
Três sonhos intrigantes e um ensinamento poderoso
Tive um sonho interessante semana passada. Ou melhor, três sonhos na mesma noite que, por algum motivo, relembrei nitidamente ao acordar.
Alguns anos atrás eu tava mais conectado com os meus sonhos, tentava lembrar, anotava-os em um caderno, conversava com a Dafne pra tentar entender, e ela às vezes usava o tarot pra ajudar na interpretação – e saía cada interpretação profunda e reveladora das coisas que vinham dos confins do meu inconsciente, era bem impressionante.
Mas nos últimos tempos não tô tão conectado aos sonhos assim, não tenho sequer lembrado direito do que aconteceu, e quando lembro logo esqueço.
Por isso fiquei encafifado quando acordei esses dias e lembrei de tantos detalhes dos sonhos da noite, e logo cheguei à conclusão óbvia de que devia ter algo importante ali.
Os sonhos
No primeiro sonho eu estava em uma sala de cinema, e tava passando um filme/documentário/show sobre o AC/DC ou o Led Zeppelin, as melhores bandas de rock’n’roll da história da humanidade. Em algum momento a exibição é pausada e começa uma espécie de intervalo, e nesse intervalo toca outro estilo musical, algo próximo de MPB, brasilidades, essas coisas, uma música mais calminha. Em seguida se abre um espaço para debate, e as pessoas começam a dar opiniões sobre o evento, algo assim, e eu aproveito o momento pra dizer que não gostei da pausa no rock’n’roll pra colocar um estilo musical muito mais calmo e lento, porque aquilo claramente murchou a adrenalina do público. (Não que eu não goste de MPB e brasilidades, muito pelo contrário, mas naquela circunstância não tinha nada a ver, quebrou o clima). Quando termino de emitir a minha opinião, alguém fala pra mim que “eu deveria falar isso para a dona”, e então reparo que a dona do espaço está próxima a mim, uma senhora de meia idade com cabelos brancos, talvez lembrando um pouco o estilo da Malévola dos 101 Dálmatas. Ela imediatamente, apenas com um gesto de cabeça, fala para os seguranças me retirarem do recinto, ordem que os desgraçados (rs) prontamente atendem. Enquanto eles me levam para fora – de forma educada, preciso reconhecer – e a plateia inteira assiste à cena, eu permaneço muito calmo, pensando que não falei nada de mais, pois apenas emiti minha opinião, absolutamente razoável, no momento oportuno. Enquanto saio, penso que era a segunda vez que eu estava sendo expulso de uma sala de cinema; não sei se teve um sonho anterior com esse mesmo roteiro ou era apenas uma memória dentro do próprio sonho.
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No segundo sonho eu estava indignado com um casal que havia me processado. Era um casal que tinha alguma loja e eu era cliente, e eu já havia gastado tubos de dinheiro na loja deles ao longo dos últimos anos. Na cena do sonho eu mostrava todos os meus gastos, escritos em algo como um quadro negro (didático!), e esbravejava: “Como vocês me colocam na justiça assim? Depois de eu gastar tudo isso na loja de vocês? Eu sou cliente de vocês, porra!”. E os dois respondiam que isso não tinha nada a ver, basicamente tacaram o foda-se pro cliente fiel deles, uma bela de uma sacanagem.
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O terceiro sonho foi quase igual ao segundo, só trocaram os personagens. Era um casal de amigos que estava também me processando e eu novamente fulo da vida. “Mas vocês são meus amigos!! Como vão me processar assim??” No final o meu amigo admitia que a verdade é que ele não queria pagar o celular que tínhamos comprado juntos (?).
Interpretação
A princípio achei que o tema podia ser traição. Dois sonhos com o mesmo tema – ser processado por pessoas que eu julgava de confiança. Poderia ser algo premonitório, do tipo “tome cuidado”. Já tive um ou outro sonho premonitório que se confirmou depois, então não seria absurdo acontecer de novo. Em geral, porém, interpretações muito diretas e superficiais dos sonhos não são as melhores; o ouro está nas entrelinhas, nas camadas mais profundas da história.
No dia seguinte encontrei a Dafne no fim da tarde em um café. Contei os sonhos e passamos a tentar encontrar o significado, a mensagem contida nessas duas histórias estranhamente semelhantes e no sonho da expulsão do cinema.
Uma das perguntas que a Dafne sempre faz é: como você tava se sentindo nesse momento do sonho? Lembrei dessa pergunta, a gente levantou algumas hipóteses e aí ficou claro: os sonhos estavam todos conectados! Não só os dos processos judiciais, mas o da expulsão também.
Por que eu fiquei tranquilão em uma situação e nas outras eu fiquei nervoso e puto e irritado?
Apego à identidade, eis a resposta.
No sonho da expulsão do cinema eu não conhecia ninguém do ambiente. Aparentemente eu tava sozinho no rolê. Fui expulso sob o falatório e um certo alvoroço do cinema inteiro, que observava a cena. Eu ia perder a segunda parte da exibição de uma das minhas bandas favoritas. Ainda assim, permaneci calmo e relaxado, apesar da evidente injustiça que estava sendo cometida.
Nos dois sonhos dos processos judiciais, pessoas próximas estavam envolvidas. Quem cometia a injustiça não era uma senhora desconhecida que lembra vagamente uma vilã de desenho animado dos anos 90, mas pessoas que tinham alguma relação comigo – num caso eu era cliente fiel, no outro, amigo.
A diferença, portanto, é o apego à identidade. No caso do cinema eu não me senti pessoalmente atacado. Ninguém lá me conhecia. Então pude manter a serenidade, mesmo sob circunstâncias adversas.
Já no caso dos processos judiciais vindos de pessoas em quem eu confiava, o que me quebrou foi a sensação de traição. Eles não podiam fazer aquilo comigo! Logo eu, cliente, amigo! E então perdi a linha total, fiquei indignado, descontrolado, agressivo, puto.
Meus descontroles no futebol
As pessoas me veem como alguém calmo, e em geral acho que sou mesmo, mas no futebol com os amigos, e na organização do nosso time, da qual faço parte meio a contragosto, de vez em quando eu fico exatamente assim: indignado, descontrolado, agressivo, puto.
E por que eu fico assim? Porque a minha identidade está envolvida, é claro. Eu cultivo ardentemente (há algumas décadas!) a imagem de um ótimo jogador amador de futebol. Eu me considero alguém experiente, um jogador calejado. Então quando surge atrito sobre algum lance, uma discussão sobre a justiça de uma falta que alguém pediu, ou um debate sobre como devemos escalar o nosso time na próxima partida, eu posso facilmente perder a linha.
Isso acontece, como os sonhos bem demonstraram, porque a minha identidade está envolvida. Perder uma discussão é aceitar que a minha autoridade em futebol, a qual eu lutei tanto para construir, foi subjugada. E isso é inadmissível (para a identidade).
No entanto, se eu conseguir lembrar de que na verdade não há uma identidade fixa ou mesmo real, posso relaxar. Posso até debater, mas em outro nível. Com tranquilidade. Em vez de ficar puto, posso manter a mesma calma de quando fui expulso do cinema.
Esses descontroles no futebol têm sido, faz algum tempo, um ponto importante na minha prática espiritual. Até agora não obtive muito sucesso em dominar meus acessos de raiva. A lição dos três sonhos talvez me ajude.
Desapegar da identidade
Não é por acaso que o Buda colocou tanta ênfase na ideia de não eu. O apego à identidade é uma das raízes do samsara – junto com o apego à ideia de que tudo é realmente existente.
A gente cria personagens (pra nós mesmos e pros outros) por meio dos pensamentos o tempo todo. Inventa narrativas, enredos, objetivos. E a decorrência é a montanha russa de emoções que achamos que é a vida: excitação e felicidade quando as coisas parecem ir bem, tristeza e depressão quando tudo desmorona.
O remédio é soltar. Abandonar a identidade sempre que se perceber agarrada(o) à ela.
A identidade é uma bolha de sabão, que aparece em seguida some (e aí aparece outra bolha, e outra, e outra…).
Não somos os mesmos quando estamos com as amigas, com a família, num date, brincando com uma criança, interagindo com um desconhecido. O jeito de falar muda, as coisas que a gente pensa mudam, a imagem que a gente tenta passar é, em cada situação, diferente.
Também não somos os mesmos ao longo do tempo. Pense na sua versão de 5, 10 ou 20 anos atrás. Há semelhanças, sim, mas há diferenças importantes, não há?
O ponto é a gente lembrar disso. Lembre que a identidade é uma quimera e solte-a. Relaxe. Respire.
Não há nada a ser protegido. Ninguém por quem temer.
Há apenas a liberdade natural da mente, que cria identidades e realidades, num teatro mágico infinito.
Lembremo-nos disso e, assim, poderemos ficar tranquilos em qualquer situação, mesmo se formos expulsos de um cinema lotado ou tomarmos uma facada nas costas de pessoas queridas.
Não há nada dentro de nós que possa ser verdadeiramente atingido.
Por Pedro Renato
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