Todas as suas dúvidas se resumem a uma única pergunta

Ontem fui numa gira de umbanda em que as entidades que incorporaram e deram conselhos pra galera eram os erês. Na umbanda seres espirituais incorporam, ou seja, se acoplam aos corpos dos médiuns durante o ritual e os utilizam para se comunicar com os humanos.

Esses seres se apresentam sob diversas formas. Tem o Zé Pilintra, que incorpora o arquétipo do malandro, tem os pretos velhos, que manifestam uma sabedoria ancestral como se fossem nossos avós, falando de forma simples e calma, tem os marinheiros, as ciganas, os exus e muitos outros. E temos os erês, que se apresentam com trejeitos de criança, falam com voz de criança, brincam, pulam, se jogam no chão, provocam uns aos outros e dão risadas estrepitosas.

Já fui em um número considerável de giras, mas acho que de erê ainda não tinha ido; foi muito legal. Acho que foi o papo mais direto e reto que tive com uma entidade.

Os erês ficam todos sentados no chão, cada um com uma pessoa não incorporada (ou seja, sem uma entidade espiritual controlando seu corpo) auxiliando nas questões práticas das consultas – em geral procedimento é esse com todas as entidades. Na minha vez me aproximei, sentei no chão e o erê, por meio do corpo da médium, me deu um abraço.

“O que foi, tio, o que que você quer?”, disse ela com voz de criança enquanto dava lambidas rápidas e incessantes em um daqueles pirulitos gigantes estilo Kiko do Chaves.

“Então…” respondi, e ela disse “Você quer muita coisa né tio, quer, quer, quer…” E eu dei risada, porque o problema é exatamente esse: a gente quer demais, quer uma coisa, depois outra, e quando enjoa quer outra, e assim indefinidamente.

Ela colocou uns marshmallows sobre as minhas pernas – os erês usam doces como elementos mágicos para passar o seu axé, uma energia que faz uma espécie de limpeza na nossa aura, no nosso campo mental – e então respondeu minhas perguntas.

Falou que eu penso demais, e que era simplesmente pra eu parar de pensar. “Faz o que tu ensina, tio!”, se referindo ao meu trampo no Videogame Cósmico com yoga, meditação e ensino budista. Um belo e merecido tapa na cara.

 

NÃO QUERER. NÃO PENSAR.

São conselhos bem budistas esses, não querer e não pensar.

Fiquei pensando sobre isso, mas essas ideias não são exatamente budistas, porque o budismo é só uma forma de organizar os métodos que conduzem à percepção da realidade como ela é e, consequentemente, à libertação de todo o sofrimento. A sabedoria do não querer e do não ser prisioneiro dos pensamentos não são budistas: são expressões da liberdade natural da mente dos seres, que é a própria natureza da realidade.

As entidades são em geral, e isso é evidente para quem já conversou com alguma, seres muito avançados. Algumas vezes você não entende bem o que elas estão te falando, outras vezes você pode até discordar, mas com certeza em muitas ocasiões você vai ouvir exatamente o que precisa, palavras de uma sabedoria cortante vindas de outro plano e que, se bem usadas, podem ser catalisadores poderosos para a nossa jornada de transformação.

Depois de tomar uns tapas na cara e chorar – como um bom pisciano – com as palavras de encorajamento da entidade, ela quis saber se eu tinha mais alguma pergunta.

Aproveitei pra trazer à baila uma questão que tá sempre rondando a minha mente: o uso de drogas. Eu gosto de ficar doidão (pisciano né). Fumei maconha todo dia por mais de 10 anos, bebia nos rolês, em dates e estádio de futebol, e de vez em quando usava bala e doce. Mas isso era mais na minha juventude, nos últimos anos, especialmente depois do yoga e da meditação, tô usando bem mais esporadicamente.

Ainda assim, falei pra ela que “sempre fico na dúvida se eu zero o uso de drogas ou se rola usar de vez em quando, como eu tô fazendo. Já tentei zerar por um tempo, depois voltei… O que você acha?” “Usar drogas te atrapalha?” “Sim.” “Então você já tem a sua resposta. Eu nunca digo pra usar ou não usar. Eu pergunto se atrapalha ou se faz bem. Se a pessoa diz que é de boa, que não atrapalha, que continue usando. Se você diz que atrapalha… Você já sabe a resposta. Tá dentro de você. Não é isso que você ensina?”, encerra ela com um sorriso traquinas no rosto (ela não perderia a chance de mais uma alfinetada).

Pois é. Tô usando pouco, bebo de vez em quando, fumo um beck com os amigos… Mas percebo cada vez mais claramente que é incompatível com a continuidade do estudo e da prática budista. O domínio da mente é uma arte sutil. Treinar a concentração, estudar os ensinamentos, tentar ver os ensinamentos em cada situação da vida, sem cair na ilusão da dualidade, alcançar o nirvana não são tarefas triviais. Perder o discernimento com entorpecentes atrapalha, não tem como negar. E perder o dia seguinte por causa da ressaca é realmente um desperdício.

No budismo tibetano um ensinamento central é o da vida humana preciosa. Não é comum obter um nascimento humano, e ainda menos comum obter uma vida humana com liberdade e tempo para praticar o darma. Um mestre diz que é como uma pessoa cega revirar o lixo e encontrar uma joia preciosa. Na visão budista, estatisticamente temos muito mais chances de nascer em outros reinos do samsara, como o dos animais.

Aproveitar cada instante para treinar o discernimento, a atenção plena, a sabedoria e a compaixão é, portanto, altamente recomendável.

Decidi, depois dos tapas e alfinetadas do erê, zerar de novo o consumo de drogas. As pressões sociais são grandes, eu sei. Os amigos enchendo o saco, “pô não vai tomar uma, não vai dar um peguinha?”. Nem no casamento do brother? Nem vendo uma banda que você curte? Nem num date?

Parece um grande drama, pra quem costuma usar entorpecentes, mas no fundo está tudo dentro da nossa mente. Não é a pressão externa o problema, mas sim como eu acredito na realidade das pressões externas, como eu tenho um medo de desagradar, como eu quero ser enturmado e aplaudido, como não quero, enfim, ir contra a corrente e ser julgado. E tem também o apego, é claro, tem a parte boa de ficar doidão, um relaxamento, uma risada frouxa. O problema são os efeitos colaterais que vêm junto.

A parte boa é que o relaxamento supremo não vem com o uso de qualquer substância. O nirvana é apontado como sendo a paz perfeita. A paz perfeita dentro da sua mente, você morando na paz perfeita, você sendo a paz perfeita. Isso é, me desculpem os junkies, incomparável com qualquer brisa de droga, que é sempre limitada e passageira.

ESTE TEXTO NÃO É SOBRE O USO DE DROGAS

Mas o ponto desse texto não era exatamente esse das drogas, mas sim o fato de que tá tudo dentro da gente. Nós sabemos o que é bom e o que é ruim pra nós. Se a gente parar, respirar, treinar a mente pra não sermos tão impulsivos, temos mais chances de escolher bem cada ação de mente, fala e corpo. Pedir ajuda externa, seja de uma entidade, uma psicóloga ou uma amiga, pode ser muito útil, com certeza. Mas a gente já sabe o que procura.

É como disse o dr. Ananda, o mestre da nossa tradição de yoga, e também um sadhu, um praticante andarilho com quem eu e a Dafne trocamos uma ideia num minúsculo restaurante de rua em Varanasi, na Índia.

No fim, todas as nossas dúvidas se resumem a uma só pergunta: isso é bom para a minha jornada de transformação?

Se a gente tiver coragem de fazer essa pergunta sempre que estivermos diante de uma escolha, nosso caminho será muito mais fácil.

 

Por Pedro Renato

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