
Seremos julgados após a morte?
A ideia de que haverá um julgamento após a nossa morte aparece, interessantemente, em diversas tradições espirituais.
Na tradição egípcia antiga, a falecida desce ao submundo após a morte e é julgada no temível Tribunal de Osíris, presidido, obviamente, pelo deus Osíris. O ápice do julgamento é o momento em que o coração da falecida é colocado em um prato da balança, enquanto a pena de Maat – a deusa da verdade e da justiça – é colocada no outro prato. Se o coração for mais leve ou igual à pena de Maat, a falecida é digna de entrar no Aaru, o paraíso egípcio. Se o coração for mais pesado do que a pena, indicando que a pessoa acumulou muitas más ações em vida, sua alma é aniquilada.
No catolicismo também há um julgamento, que ocorre imediatamente após a morte de cada pessoa. Jesus Cristo em pessoa dá o veredito, de acordo com a fé e as obras da cidadã em vida, e a alma pode ir para o céu, para o purgatório ou para o inferno. Vamos torcer para que Maria apareça para nos defender, como acontece no Auto da Compadecida – esse elemento não aparece no cânone católico, mas no filme ficou ótimo.
Mesmo quando não há uma descrição de uma cena de julgamento propriamente, é muito comum que as tradições espirituais considerem que nosso destino no pós morte será definido pela qualidade dos nossos atos em vida.
MAS NINGUÉM MORREU E VOLTOU PRA CONTAR COMO É, CERTO?
Errado.
Delog é uma palavra tibetana que significa “aquela que retornou da morte”, referindo-se a indivíduos que tiveram uma experiência de quase morte ou um período de morte clínica durante o qual, embora o corpo permanecesse inerte, aparentemente morto, a consciência viajou para outros reinos da existência.
Dawa Drolma, tibetana que viveu na primeira metade do século XX, foi uma delog. Instruída por visões da divindade Tara, e contra a recomendação dos seus próprios mestres humanos, Dawa Drolma fez uma prática espiritual perigosa, por meio da qual seu corpo ficou em um “estado entre a vida e a morte”, como ela mesma afirma, por cindo dias.
Durante sua jornada de cinco dias como uma delog, a consciência de minha mãe, não impedida pelas restrições de um corpo físico, viajou livremente por todos os reinos da mente, desde o reino dos infernos com seu sofrimento insuportável e incessante até as mais exaltadas terras puras dos seres de sabedoria. Pelo resto da vida, quando minha mãe dava ensinamentos, ela se inspirava em sua experiência como delog. Suas descrições do sofrimento dos outros reinos eram muito vívidas, e lágrimas vinham a seus olhos enquanto falava. “Não importa o quanto sua vida possa ser difícil neste reino humano”, ela diria, “não há comparação entre as dificuldades daqui e as de outros reinos”. Ninguém duvidada de que ela estivesse falando a partir de uma experiência direta, e sua credibilidade foi reforçada pelas mensagens de parentes falecidos às pessoas do lugar.
Chagdud Tulku Rinpoche – O Senhor da Dança, A autobiografia de um lama tibetano.
Como diz o mestre Chagdud, filho de Dawa Drolma, mesmo os mais céticos dos tibetanos foram obrigados a reconhecer a autenticidade da experiência de sua mãe, já que ela voltou do além com recados específicos para familiares dos falecidos que encontrou por lá. Por exemplo, a localização exata em que a pessoa havia enterrado moedas e itens de valor, que efetivamente eram encontrados no lugar indicado.
Estou lendo o livro em que Dawa Drolma relata suas aventuras – Delog, Viagem aos Reinos Além da Morte. É muito louco.
Nos reinos puros, que são lugares manifestados pela intenção iluminada dos budas, os seres com bom karma renascem para avançarem rapidamente no seu treinamento espiritual rumo à iluminação completa. Dawa Drolma visita alguns desses reinos e recebe bênçãos, conselhos e preces mágicas. Conversa com budas, deidades, mestres falecidos. A semelhança de alguns elementos com jogos de videogame é impressionante: ela passa por vários portais, com seus guardiões, que lhe dão conselhos. Encontra seres com aspecto ameaçador. Vai avançando gradualmente até chegar no objetivo final, acompanhada por Tara, que está sempre lhe protegendo, mais ou menos como a máscara Aku Aku protege o Crash nas suas correrias pelas Ilhas Wumpa.
Se, como talvez você tenha reparado, eu já achava que a vida é tipo um grande videogame cósmico, os relatos de Dawa Drolma meio que confirmam essa tese!
O JULGAMENTO
Todo videogame tem suas fases difíceis, e nossa delog visitou as piores. Os reinos dos infernos são descritos detalhadamente em livros budistas como As Palavras do Meu Professor Perfeito. Ações não virtuosas (matar, roubar, má conduta sexual, mentir, caluniar, linguagem agressiva, fala inútil, cobiça, malícia e visões errôneas) que se acumulem podem conduzir o ser para um reino de sofrimento realmente trash após a morte. Dawa Drolma presenciou diversas pessoas que ela conhecia passando por variados tipos de dores absurdas, as quais nenhum diretor de filme de terror B sequer ousou sonhar, confirmando as descrições que aparecem no cânone budista. Esses tormentos podem durar períodos de tempo extremamente longos.
Por outro lado, a delog presenciou também mestres e mestras avançadas aparecendo em meio aos reinos de sofrimento e conseguindo tirar milhares de pessoas dali, encaminhando-as para reinos puros. Essa é uma boa meta, me parece: alcançar um nível extremo de sabedoria, compaixão e poder, para aparecer nos reinos de sofrimento e tirar a galera de lá.
Dawa Drolma sempre perguntava quais ações levaram àquele resultado específico, e recebia as respostas de Tara, sua fiel escudeira, ou da própria pessoa em sofrimento. De acordo com as respostas, a orientação, para não cairmos nesses lugares terríveis após a morte, é basicamente evitar as ações não virtuosas, beneficiar todos os seres por todos os lados e fazer muita prática espiritual (meditação, estudo, mantras, oferendas etc.) para purificar o karma negativo e alcançar a liberação da mente.
É impactante nas descrições dos infernos a presença do Senhor da Morte, chamado de Yama ou Dharmaraja. Ele aparece como um julgador implacável, com uma aparência descomunalmente apavorante e um séquito gigantesco de servos que espezinham aqueles de karma negativo. O senhor simpático que abraça os reinos da existência com a barriga, na imagem que abre esse texto, é uma representação dele.
Os servos seguram objetos como um espelho que mostra as ações da pessoa, uma balança onde as ações boas e más são pesadas e uma tábua que apontará o destino após o julgamento. A ré tem direito à defesa perante o julgador. Dharmaraja, depois de ouvir os argumentos pró e contra a cidadã (proferidas por criaturas que são projeções mágicas do próprio karma da pessoa), define o seu destino, e então seus servos a encaminham para o local designado – em geral não muito agradável.
COMO NÃO SER CONDENADA PELO SENHOR DA MORTE
O truque é negar as acusações!
Não sou eu que estou dizendo; quem diz isso é o Lama Padma Samten, mestre brasileiro ordenado por Chagdud Tulku Rinpoche, grande mestre tibetano filho de Dawa Drolma, a delog. (Não é incrível, aliás, essa linhagem de seres de sabedoria chegar tão pertinho da gente, aqui no Brasil?)
As descrições bastante gráficas desses reinos todos (que parecem ter saído dos livros do Harry Potter ou do Senhor dos Anéis) não deixam, na minha visão, muita margem para dúvidas sobre a sua existência. Acredito nessas descrições pelo simples fato de que os ensinamentos dos que fazem esses relatos serem muito profundos e evidentemente sábios. Não faria o menor sentido simplesmente inventar um monte de fantasias e enfiá-las no meio de análises refinadas e libertadoras sobre a mente, a realidade, o sofrimento e a felicidade.
Apesar disso, todos esses reinos – inclusive o nosso, o reino humano, a vida cotidiana que a gente conhece – são fundamentalmente ilusórios. Nenhum local possui uma existência sólida, real. São mundos mentais, inseparáveis das mentes dos seres que, de acordo com suas ações, projetam esses mundos.
Como cometemos ações parecidas, projetamos realidades coletivamente, e por isso temos a sensação de que estamos todos olhando para um mesmo mundo, totalmente externo a nós. Porém, embora compartilhemos algumas visões, cada um vê as coisas de um jeitinho especial que é só seu (rsrs).
Assim, tanto os reinos puros dos budas quanto os reinos dos infernos comandados pelo Senhor da Morte são, em essência, vazios. São projeções das mentes dos próprios seres que habitam esses mundos.
Por isso o conselho do Lama Samten é negar as ações negativas. Podemos dizer para Dharmaraja que “na verdade não fui eu quem cometi tal ato, foi um ser ilusório que surgiu naquele momento preso à ignorância da separatividade…”
Não é possível escapar das consequências dos nossos atos, segundo os ensinamentos. Mas o treinamento espiritual, as realizações espirituais e a liberação da mente podem transformar o nosso karma, inclusive diminuindo drasticamente o impacto de ações negativas passadas que cometemos.
O que o Lama está querendo dizer com a ideia de negar as acusações é que precisamos treinar para perceber o aspecto ilusório das nossas identidades e das realidades que elas criam. Penetrando nessa sabedoria, podemos perceber, na hora derradeira, que Yama, o Julgador, é uma projeção da nossa própria mente. Perceber isso (e sustentar essa visão) é repousar na não dualidade entre mente e objeto. Isso é a liberação do sofrimento.
Manter essa visão diante de Yama não deve ser muito simples; por isso os mestres recomendam com veemência que a gente treine desde já, todo dia, com ardor, sem perder tempo. Meditação, estudo dos ensinamentos, mantras, tudo isso é essencial. Trocar o “modo julgamento” da mente pelo “modo compaixão”, com os outros e com a gente mesmo, é uma chave poderosa também.
O Senhor da Morte é uma projeção de nosso próprio aspecto julgador, sempre tão implacável com a gente e com os outros. Se trocarmos esse julgamento constante por compaixão (e isso é possível com o treinamento espiritual), a tendência é escaparmos de Yama no pós morte e, quem sabe, alcançarmos a iluminação ou um renascimento em um reino búdico.
COMO DAWA DROLMA LIDOU COM O SENHOR DA MORTE
Dawa Drolma e sua protetora, a deidade Tara, encontraram o Senhor da Morte sentado em seu trono gigante de ferro, em sua forma terrível, furiosa, com olhos que brilhavam como o sol e a lua, vermelhos de sangue e piscando como trovões, peles de elefante, de ser humano e de tigre cobrindo seu corpo, uma coroa feita de cinco crânios humanos em sua cabeça, cercado por seus servos.
A delog e Tara fizeram três prostrações e ofereceram um hino de louvor a Dharmaraja. Um trecho:
Se há o reconhecimento, há apenas isso – a própria mente da pessoa.
se não há o reconhecimento, há o grande e furioso senhor da morte.
Na verdade este é o vitorioso, o dharmakaya Samantabhadra [o Buda primordial, de onde brotam todos os budas].
Nós oferecemos homenagem e louvores aos pés de Dharmaraja.
Ou seja, se você reconhece que tudo é uma projeção da sua mente, você vê a natureza búdica em tudo! Tudo é apenas uma manifestação mágica da realidade absoluta. Mesmo os eventos e seres mais terríveis são inseparáveis da realidade absoluta, impermanentes, ilusórios, mágicos. Repousar nessa sabedoria dissolve todos os nossos medos e sofrimentos.
Ao final do hino de louvor,
Dharmaraja sorriu de leve e respondeu: “Bem, filha eloquente do reino humano, que tipo de karma positivo e virtuoso você acumulou? Que tipo de karma negativo e maligno você acumulou? Fale honestamente, pois mentir não adiantará nada!” Tara Branca levantou-se, ofereceu três prostrações a Dharmaraja e disse: “Tenho algo a dizer em seu nome”. “Muito bem”, respondeu ele. “Esta moça é filha da família de Lama Tromge”, disse ela. “Quanto às suas virtudes, ela faz todas as oferendas que pôde às Três Joias, considerando-as superiores a ela. Ela tem grande compaixão e não menospreza pessoas más, mendigos ou pedintes como seus inferiores. Ela é muito generosa, senhor. Embora não tenha praticado muito o Budadharma, ela fez com que outros praticassem e os encorajou na virtude. Ela sempre teve grande fé, devoção e bodhicitta. Ela nunca cometeu um único ato prejudicial ou não virtuoso, meu senhor.” Quando ela se pronunciou, Yama disse: “Bem, agora! O ser com cabeça de serpente olhará em seu espelho para ver se isso é verdade.” O servo com cabeça de serpente olhou para o espelho e disse: “A imagem é como o sol surgindo por trás das nuvens.” O com cabeça de leão tocou o tambor do tribunal e pronunciou: “O som é doce”. O com cabeça de macaco ponderou as coisas na balança e declarou: “Sua virtude é predominantemente avassaladora; há pouco mais de um ou dois atos nocivos”. Finalmente, o guarda com cabeça de boi olhou para os pergaminhos e disse: “Espere um minuto! Você não cometeu algumas ações prejudiciais, como esmagar ovos de pássaros no chão ou demonstrar um temperamento muito teimoso?” Diante disso, Dharmaraja riu e disse: “Ho, ho! Bem, minha menina, mesmo você sendo compassiva, pesadas são as faltas das pessoas más. Se eu punisse alguns e não outros, como sou o rei das más ações, certamente seria forçado a experimentar as consequências do meu próprio abandono do dever. Então, por enquanto, vou mandá-la de volta ao seu próprio reino mais uma vez, mas você deve confessar seus atos prejudiciais e tomar cuidado para ser o mais virtuosa possível. Guarde em sua mente as cenas do inferno, as mensagens daqueles que já faleceram e estes conselhos de Dharmaraja. Conte-os também aos outros, encorajando todos a praticar a virtude.”
E foi isso o que ela fez.
Que possamos nos inspirar e aprender com a aventura insanamente corajosa e espetacular de Dawa Drolma!
Por Pedro Renato
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Na Ekadanta, a comunidade do Videogame Cósmico, treinamos para estarmos preparados quando estivermos diante do Senhor da Morte. Se quiser treinar com a gente, é só chegar.

