por que videogame cósmico?

– É um grande videogame, na verdade. Ou a vida não é como um videogame? A gente vai evoluindo, crescendo. E quanto mais fortes ficamos, mais difíceis são os desafios que surgem na nossa vida.
– Tipo os chefes de fase num game.
– Exato! A vida é um videogame e o segredo é o amor. Quanto mais amoroso a gente fica, mais poder a gente ganha. A gente vai evoluindo, ficando mais amoroso, mais sem ego e, então, mais poderoso…

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Foi esse diálogo, ocorrido em março de 2017, a semente do projeto Videogame Cósmico. Eu recém tinha tomado ayahuasca pela primeira vez e abandonado 12 anos de ateísmo e crença fundamentalista na ciência. E então encontrei o Cleber, que me contou sobre suas experiências meditativas em rituais de ayahuasca – “a ayahuasca pode te chutar pra estados profundíssimos de meditação!” –, me inspirou a começar a meditar e estudar budismo, e de quebra mandou essa da vida ser um grande videogame, o que gerou a semente do projeto Videogame Cósmico. Nada mal pra uma conversa aleatória no meio de um congresso sindical, certo?

Então essa é a base: a vida é como um videogame, porque nosso personagem vai andando pelo mundo, passando por muitos cenários, enfrentando desafios diversos, e vai evoluindo, e aprendendo, e ficando mais forte, e os desafios vão ficando mais complexos, exatamente como os jogos de videogame em geral são projetados.

E qual seria a inspiração dos roteiristas de jogos – e de livros e filmes e desenhos animados e novelas – senão a própria vida?

Aliás, a nossa tendência para jogar e brincar é apontada pelo historiador Johan Huizinga como sendo tão basilar para a espécie humana a ponto dele propor que nos denominemos homo ludens, homem que joga, em vez de homo sapiens, homem que pensa. Os jogos seriam anteriores à própria cultura, já que no mundo animal encontramos exemplos evidentes de jogos, como dois cachorros que brincam e engendram um acordo tácito de que estão brincando, por meio de um ritual de atitudes e gestos, regras implícitas (tipo não se machucar) e o prazer e a diversão que obtêm da atividade.

 

E A VIDA O QUE É, DIGÁ LÁ MEU IRMÃO

Como pergunta Gonzaguinha na genial O que é, o que é?, a vida é alegria ou lamento? Temos debatedores infindáveis defendo os dois lados e suas variações. Filósofos, poetas, cientistas, debatedores de mesa de bar, todo mundo tem sua tese. Mesmo os que não querem pensar muito no assunto acabam vivendo segundo um certo modo de ver a vida: mesmo que você não pense no assunto, suas decisões são baseadas em algum tipo de visão sobre o mundo e o que é a felicidade.

O projeto Videogame Cósmico, que já nasceu com o propósito de explorar a sabedoria legada pelos mestres e mestras espirituais, começou bebendo em fontes variadas. Hermetismo, hinduísmo, yoga, tantra, umbanda, espiritismo, budismo e até pitadas de cristianismo compunham a nossa salada mista de visões de mundo e métodos para alcançar a felicidade e a libertação do sofrimento.

Com o tempo, mudamos e adotamos o budismo como nosso guia principal para a análise da existência e da mente e nosso método para trilhar o caminho dos sábios. (Se quiser saber o porquê dessa mudança, clique aqui.)

E aí na visão budista toda a existência é uma manifestação mágica da realidade absoluta. A base da realidade é uma dimensão vazia, de onde tudo que existe brota. Mas tudo que brota é também vazio e inseparável da base, já que surge e desaparece no próprio campo da realidade absoluta, que, como a designação absoluta revela, abarca absolutamente tudo.

Junto com esse grande vazio luminoso (luminoso porque não é um vazio vazio, é um vazio que cria realidades infinitas) há uma consciência atemporal. Há uma consciência que percebe tudo na mente de todos os seres. Essa consciência não desliga nunca e transcende a vida e a morte, o passado, o presente e o futuro.

Então temos na base da realidade, no seu aspecto mais fundamental, sempre presente:

Vacuidade: o aspecto vazio de tudo que surge.

Luminosidade: o aspecto criativo, o fato de que as galáxias, mundos e seres, ainda que vazios de uma existência real, surgem.

Consciência atemporal: há uma consciência que observa tudo que surge e é capaz de ver as coisas como realmente são.

Mas e o videogame cósmico, onde entra nessa história?

 

ONDE O VIDEOGAME CÓSMICO ENTRA NESSA HISTÓRIA

Bem, nós em geral não percebemos a vacuidade, a luminosidade e a consciência atemporal que estão sempre presentes.

Nós vivemos em uma realidade fake, onde nós realmente existimos como uma pessoinha separada de todo o resto do cosmos e onde tudo que existe é muito sólido e sério e real. Operando dessa forma, sofremos, ficamos angustiados, ansiosos, sempre insatisfeitos.

Segundo os budas estamos operando dessa forma há incontáveis vidas; porém, é possível treinar a mente para aprender a soltar das ilusões e apegos. Com a prática se aprende a deixar a mente em seu estado natural, a meditação sem meditação, e este é o caminho para perceber a realidade como ela é: vacuidade, luminosidade e consciência. Repousar a mente nessa visão profundíssima, a mais profunda possível, é o nirvana, a paz perfeita.

Então pense comigo: estamos operando um personagem que enfrenta desafios variados e dificuldades e irritações múltiplas, mas se aprendermos a jogar, e desenvolvermos nossa técnica, alcançaremos a glória.

Isso aqui, a vida, a existência, só pode ser um grande videogame cósmico, galera.

Mas não foram os budas que falaram isso.

 

SHIVAISMO DA CAXEMIRA

Agora somos um projeto de divulgação do budismo, mas como a base do budismo é a grande vacuidade, onde tudo se dissolve, é claro que não vamos ficar sectários e fechar nossas cabecinhas para a multiplicidade de sabedorias maravilhosas que existem em tantas tradições espirituais.

Quando fomos pra Índia em 2019 com um grupo do yoga fizemos uma peregrinação por templos de Shiva, e aprendemos sobre o shivaismo, uma tradição indiana que considera que a realidade absoluta é Shiva.

Dentro do shivaismo há o Shivaismo da Caxemira; a Caxemira é uma região a noroeste da Índia onde foram revelados os Shiva Sutras, textos em que essa tradição se baseia. Estamos falando de uma tradição não dualista, ou seja, que não separa a existência entre espírito e matéria, ou realidade e ilusão. Tudo é Shiva, porque Shiva é a realidade absoluta, que por definição abarca tudo, logo tudo é Shiva e é isso.

Essa é uma visão que guarda certas semelhanças com o budismo tântrico, que também considera que na realidade última não há separação real entre coisa alguma – tudo que surge é uma manifestação mágica da realidade absoluta, Darmata para os budistas, Shiva para os shivaístas. Na realidade última, segundo o budismo, temos a Natural Grande Perfeição de Todas as Coisas, com o que um shivaísta certamente concordaria, já que tudo é Shiva, a pura consciência, logo tudo só pode ser perfeito como é.

E ainda, segundo o mestre budista chamado de o Onisciente Longchenpa, tudo é o jogo da consciência atemporal. Ou seja, tudo que surge como aparentemente diverso e como objetos e seres separados uns dos outros, na verdade é um jogo, uma mágica efetivada pela consciência atemporal que tudo permeia.

Opa, peraí, o jogo da consciência atemporal? Então temos um buda falando em jogo também, muito bom.

Digo também porque o shivaismo é quem explora mais essa ideia de a vida ser um grande jogo. (O buda histórico não dá muita bola pra questão do que é a vida, ou do porquê a gente tá aqui vivendo essas loucas aventuras, ele foca totalmente no caminho pra superação do sofrimento e libertação completa da mente.)

A ideia é mais ou menos assim:

No Shivaismo Trika [da Caxemira] há uma colocação muito importante sobre o “porquê” da Criação. Deus, ou no nosso caso, Parama-Shiva, é svatantra, “auto-independente”, “livre”. A Criação é vilasa, um “jogo”, uma “brincadeira” inocente d’Ele. Compreender que tudo é um jogo, é permanecer centrado na Vontade Divina. Em êxtase transcendental, Shiva e Shakti criam infinitos universos tal como uma criança que cria seus personagens pela própria felicidade que isto lhe dá. [trecho retirado desta boa introdução ao Shivaismo da Caxemira]

Shakti é inseparável de Shiva. Ela é representada como sendo sua consorte, e é o aspecto de energia da realidade absoluta – que me parece próximo ao conceito de luminosidade (criatividade) do budismo, já que é por meio da energia que tudo surge, enquanto Shiva é a consciência. Já vi mestre hindu falar de Shiva como sendo também o grande vazio de onde tudo surge, o que aproximaria ainda mais os shivaistas da visão budista de que a base da realidade é vacuidade, luminosidade e consciência.

Parece que os seres iluminados do budismo tântrico e do shivaismo chegaram a visões bem próximas da realidade última, o que é realmente incrível.

De todo modo, aparentemente a realidade absoluta ficou entediada de apenas permanecer lá, absolutamente absoluta, e começou a fazer surgirem universos, galáxias, estrelas, planetas, dimensões e seres. Estes seres podem cair na ilusão de que são seres realmente existentes e separados do resto, e então entram em um ciclo de nascimentos e mortes que só acaba quando o ser desperta para a realidade autêntica, a de que ele é um Buda. Ou Shiva. O nome não importa.

Shiva (ou Buda) se esconde de si mesmo para brincar de se encontrar.

Shiva e Shakti

MAS SERÁ QUE É ISSO MESMO?

Bem, tente encontrar uma visão mais profunda que essa sobre a existência e a jornada dos seres pelo cosmos – e falhe miseravelmente.

Mas não acredite simplesmente, porque isso também não vai funcionar. Investigue. Pegue os ensinamentos para estudar e meditar sobre eles.

Treine a compaixão por todos os seres no dia a dia. Como o Cleber falou lá no início do texto, o amor é realmente a chave, um poder especial dentro do game. Se tudo é Shiva, o ódio não faz o menor sentido. E, na visão budista, o jeito mais rápido de alcançar o estado de Buda é desenvolver bodicita, a mente da iluminação, que busca alcançar a budeidade para ajudar todos os seres a alcançarem também.

Como um bom videogame, o grande videogame cósmico também tem o seu vilão.

Na visão budista o vilão é Mara, o senhor da ilusão, que concede as coisas que queremos – o que, paradoxalmente, nos mantêm presos no ciclo de desejo/insatisfação/desejo que é o motor do ciclo nascimento/morte/nascimento tanto no nível grosseiro, de o corpo morrer mesmo e a gente renascer em outro corpo, quanto no nível sutil, com o nascimento e morte de incontáveis identidades que vivenciamos ao longo de uma única vida.

 

MAS TEM  UM PLOT TWIST

O vilão, galera, é Shiva. Mara é Buda. Quando o Buda estava prestes a alcançar a iluminação, foi seduzido e ameaçado pelas ilusões mágicas de Mara. Mas viu que era apenas Mara, permaneceu imóvel, e alcançou a imortalidade e a onisciência.

Mara faz parte do game; é o professor que mostra nossas regiões de apego, os obstáculos que ainda precisamos dissolver por meio da confiança na consciência atemporal.

Tudo é o jogo da consciência atemporal.

E os budas e yogis dão as dicas quentes, o crackeado pra gente avançar rápido no videogame cósmico.

Treinar a concentração da mente. Beneficiar os seres em todas as direções.

E, assim, alcançar o nirvana, a iluminação, a onisciência.

Para então manifestar a sabedoria e a compaixão perfeitas em benefício de todos os seres ilusórios, os personagens do game que também estão tentando encontrar o sentido disso tudo, a felicidade, o êxtase, a paz perfeita.

Não tem outra coisa pra fazer galera.

Aprendamos a jogar o grande jogo cósmico.

O Onisciente Longchenpa

 

Por Pedro Renato

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