O jeito definitivo de lidar com a culpa

A culpa pega um, pega geral e também vai pegar você.

Todo mundo sofre com a culpa. Culpa por ter feito, culpa por não ter feito, culpa por não ter falado praquele(a) menino(a) que gostava dele(a) na quinta série, culpa pela resposta que dei ontem – podia ter sido uma resposta muito mais inteligente, eu sou um idiota mesmo.

Tem muitas boas receitas pra lidar com a culpa.

Se a gente pegar mais leve com a gente mesmo a culpa diminui, então amar a nós mesmos, inclusive os nossos erros e defeitos, aquela coisa de se acolher, sabe? Isso pode ajudar muito. (Pare a leitura agora, dê um abraço em si mesmo, sorria e veja como se sente.)

Podemos também parar de julgar os outros, o que não é muito simples, então podemos ao menos ficar conscientes quando julgamos alguém (seja por pensamentos ou pela fala), opa, fiz um julgamento aqui. Aí com o tempo vai tentando diminuir os julgamentos, evita falar mal dos outros, tenta entender que tá todo mundo tentando ser feliz, dos jeitos mais tortos e fadados ao fracasso possíveis e imagináveis, mas é isso, tá todo mundo tentando. E medita, coloca a meditação na sua rotina, porque aí você vai ganhando estabilidade e flexibilidade mental, e então vai ficando mais fácil não seguir o impulso de julgar e fofocar.

Mas no título deste texto que vos fala não prometi métodos comuns pra lidar com a culpa, eu prometi o método definitivo, e é isso que eu vou entregar, minhas amigas. (Se você não leu o nosso texto anterior, ele é uma boa introdução para este.)

A abordagem budista para lidarmos com nossas aflições mentais envolve sempre investigação, então é isso que vamos fazer quando surgir a culpa na nossa mente. Nós vamos investigar.

Minha sugestão é que você se debruce sobre duas questões:

1 – O que é a culpa?

Aqui você vai, em vez de simplesmente pensar os seus pensamentos e se lamentar e se autoflagelar por ter feito X, Y ou Z, parar e observar o que está acontecendo na sua mente. Como a culpa se manifesta? Ela aparece por meio de pensamentos? De imagens, memórias sobre algo que aconteceu? A culpa envolve também sensações corporais? Que sensações são essas? A culpa afeta a qualidade e o tom dos seus pensamentos? O que você percebe no cenário da sua mente? Angústia, tristeza, ansiedade? Quando se distrair (e, spoiler, isso vai acontecer), perceba que se distraiu e volte a fazer a sua investigação. Repita o processo quantas vezes forem necessárias.

Investigando com cuidado, você vai perceber que o que a gente chama de culpa na verdade é um emaranhado de pensamentos, memórias, imagens, projeções de futuro, sensações corporais, emoções. A culpa surge de um cenário que a nossa própria mente monta, com seus personagens e enredos complexos. Mas o ponto é que tudo isso não tem uma existência real, objetiva. O cenário, os personagens e os desencontros são construídos e sustentados pela nossa própria mente.

2 – Quem está se sentindo culpada(o)?

Aqui chegamos ao cerne da investigação. Quem está se sentindo culpada(o)? Quem é a dona da culpa?

Para existir a culpa, precisa ter alguém se sentindo culpado. Se não tiver alguém, o que acontece com a culpa? Ela não fica flutuando como um balão de gás hélio à deriva, à espera de um bom culpado para se acoplar. A culpa só existe em relação ao cidadão culpado. Se a pessoa desaparece, a culpa também desaparece.

NÃO é assim que a culpa funciona, gente.

Então vamos investigar. Onde está a pessoa que sente culpa? Onde está o eu?

No corpo não está, porque o corpo muda muito. Um bebê de 6 meses de idade não é o mesmo de um idoso de 83, certo? Se o eu estivesse no corpo, como poderíamos sonhar à noite? Enquanto dormimos o corpo fica parado, mas ainda assim temos experiências prazerosas e desagradáveis, sentimos medo e felicidade, flutuamos em algum lugar com um corpo de sonho. E enquanto tudo isso acontece, não temos a menor ideia de que estamos dormindo; a vida no sonho é como a vida acordada, a gente vai simplesmente vivendo, pensando, interagindo com o ambiente.

O campo dos pensamentos também é um bom campo para procurarmos o eu. São os pensamentos que constroem nossa identidade (junto com as emoções, que colorem os pensamentos). A gente olha o mundo, olha pros outros seres, diferencia isso tudo como “não sendo eu” e, voilá, temos um euzinho aqui. Basta, contudo, analisar com cuidado para perceber que não é apenas um eu que surge dentro dos enredos construídos pela mente por meio dos pensamentos: são vários!

Somos um com os amigos, outro com o pai, outro diferente com a mãe, outro com os primos distantes, outro com os desconhecidos, outro com os colegas de trabalho, com certeza outro com a chefe… É claro que há conexões entre esses eus todos, mas há também, inegavelmente, dissonâncias. E mudamos com o passar dos dias, das semanas, dos meses e anos, também. Onde está o eu, dentre esses intermináveis personagens que a nossa mente vai moldando?

O Buda esclarece a questão: não tem eu. A mente é quem cria as identidades todas, mas ela não está realmente presa a nenhuma identidade específica. Nós não somos nenhuma identidade específica, mas sim uma natureza livre e criativa que constrói as identidades.

A culpa sempre vai estar completamente relacionada e inseparavelmente intrincada a uma identidade específica que estamos construindo com a nossa mente naquele exato momento em que estamos nos sentindo culpados.

Agora, imagine que você está lá, se sentindo uma idiota por ter escorregado e caído de cabeça no chão no primeiro date com a crush, se sentindo culpada por sempre ter sido toda atrapalhada e agora você obviamente perdeu o grande amor da sua vida por causa disso, pensando “eu devia ter feito alguma coisa, aula de etiqueta, algum esporte, qualquer coisa que me ajudasse a andar sem cair ridiculamente estatelada na calçada.”

Nesse momento, enquanto você ainda está no chão, as pessoas levantando das suas mesas no bar para te ajudar a levantar, sua face ficando quente e vermelha como o vestido da mina de Matrix, nesse exato momento você pode lembrar.

Lembre que a vergonha, a culpa, qualquer emoção perturbadora que você esteja sentindo, se refere a um eu construído pela mente. Assim como os outros eus envolvidos na situação, os eus das outras pessoas também são construídos pela sua mente. Todos têm o mesmo tipo de mente, uma mente livre que constrói identidades e realidades. Ninguém tem uma identidade fixa.

A culpa, você que sente a culpa, os outros envolvidos que aumentam sua sensação de culpa, são apenas personagens. Não são reais. São essencialmente vazios.

A culpa é um emaranhado de imagens, pensamentos, emoções, sensações corporais, baseadas na sensação falsa de que existe um eu aqui sentindo tudo isso e que realmente é culpado de algo, mas tudo isso é vazio de uma existência real. É como um filme: sentimos medo, terror, alegria, satisfação etc. vendo um filme, embora nada daquilo ali seja real. Nossa vida inteira é igualzinha; as emoções que sentimos correspondem às histórias e personagens que inventamos pra nós mesmos e pros outros.

Perdidos dentro do personagem, somos presa fácil de emoções perturbadoras como a culpa. Treinando a mente para perceber que é tudo como um filme (ou como um sonho, ou como uma bolha de sabão, como o reflexo da lua na água – metáforas clássicas do budismo), nos libertamos das angústias dos personagens.

Lembre disso, relaxe, respire, aceite a ajuda do tiozinho amigável que está te ajudando a levantar, ignore os jovens da mesa 14 que nem tentaram disfarçar o riso. Em breve você vai estar comendo, bebendo, depois talvez dançando, depois quem sabe fazendo sexo, depois dormindo. Outros eus, outras identidades, sem culpa nenhuma. A culpa desaparece magicamente com o tempo, porque nunca existiu realmente de fato.

Apenas deixe a culpa desaparecer magicamente, assim como surge magicamente, atrelada às identidades ilusórias e mágicas que a nossa mente constrói incessantemente.

Repita o processo, até que a culpa já não tenha mais poder nenhum sobre você.

 

Por Pedro Renato

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