
O carnaval cabe no nirvana?
O carnaval tem seu lado maravilhoso, é inegável.
É bonito ver as pessoas tomando conta das ruas – que em geral são reservadas aos carros que passam rápido cuspindo fumaça – com suas fantasias coloridas, cantando juntas as músicas que nos fazem rir e chorar, dançando, andando e parando, sem pressa.
É maravilhoso ver a galera festejando, brincando, se divertindo – um contraponto fantástico à distopia que vivemos, quando em pleno capitalismo apocalíptico, o mundo acabando, a humanidade prestes a derreter como lesma ao sol, como diz o Ailton Krenak, e a gente se matando de trabalhar nos nossos empregos maçantes para alguma corporação obscura ficar ainda mais rica.
Pra organizar o carnaval tem que surgir também um senso de comunidade, o bloco ensaiando durante o ano, buscando a sintonia fina dos instrumentos. E o objetivo é a alegria, a diversão, não é uma organização pra [bocejo] ganhar mais e mais e mais dinheiro.
Tem a coisa da subversão também: simplesmente obedecer as regras de uma cultura excludente e adoecedora é meio que chancelar a barbárie, sabe. Mas no carnaval os foliões se permitem ignorar algumas regras sociais, brincar, tomar as ruas, usar roupas nada a ver (ou não usar), e tem um quê de liberação nisso.
FEITA ESTA INTRODUÇÃO PARA QUE NINGUÉM ME CONFUNDA COM UM MORALISTA MALA ODIADOR DE CARNAVAL
Passo a uma análise mais aprofundada, não do carnaval em si, mas do prazer e da felicidade, que é o que a gente busca quando vai pro carnaval – e em todas as coisas que a gente faz na vida, embora em geral não obtamos os resultados que desejamos.
É que eu vivi intensamente esse carnaval. Peguei dois blocos por dia – tem muito bloco bom em São Paulo, apesar da falação das más línguas – e fiz de tudo que se tem direito na maior festa do mundo. (Parece que o carnaval é a maior festa do mundo mesmo, o que é bastante crível, afinal são milhões de pessoas festejando pelas ruas em um país continental durante quatro dias seguidos.)
Me diverti bastante. Dancei. Fiquei doidão. (Meu período sem drogas durou 3 meses mais ou menos. Recomecei do zero a contagem.) Beijei. Fui num samba na quarta-feira de cinzas. Fiquei doente deitado o dia inteiro na sexta (por que será). No sábado de pós carnaval fui pra um bloco, depois num show apoteótico do Offspring, depois num pós bloco, e no domingo o último e derradeiro bloco.
E aí fiquei uma semana meio lesado, corpo se recuperando pouco a pouco, a mente totalmente distraída.
Dei uma exagerada, é claro, mas será que tem alguma felicidade comum do samsara que realmente nos preenche? Ou será que em algum momento a gente acaba ficando esgotado, seja do carnaval, de uma viagem, de um casamento, de uma temporada na praia…
Pra entender o que acontece, vamos usar um ensinamento maravilhoso do mestre budista Ajahn Brahmavamso, em que ele divide os tipos de felicidade em 3:
1 – Estimulação sensual [qualquer experiência sensorial, não apenas a sexual]: “A felicidade gerada pelo estímulo sensual é quente e excitante, mas também causa agitação e como consequência o cansaço. A sua intensidade é reduzida com a repetição. Além disso, a felicidade gerada pelo estímulo sensual produz um desejo cada vez mais forte, como um viciado que cada vez precisa de uma dose mais forte, fazendo com que essa felicidade seja instável e tirânica.”
2 – Realização pessoal: “A felicidade causada pela realização pessoal é quente e gratificante, mas também desaparece com rapidez, deixando uma sensação de um buraco vazio que precisa ser preenchido. A felicidade causada pela realização pessoal produz mais investimento na obsessão pelo controle, encorajando a ilusão do poder pessoal. O controlador então aniquila toda felicidade.”
3 – Abandono [desapego]: “Mas a felicidade nascida do abandono é refrescante e dura por muito tempo. Ela está associada a um verdadeiro sentimento de liberdade. A felicidade nascida do abandono motiva mais abandono e menos interferência. Como ela encoraja deixar as coisas correrem o seu próprio curso, ela é mais estável e dura muito tempo sem nenhum esforço. É aquela mais independente de causas. Está mais próxima do incondicionado, do não-causado.”
AGORA ADIVINHE QUAIS TIPOS DE FELICIDADE NÓS ESTAMOS SEMPRE BUSCANDO
Acertou, miserável: 1 e 2. Estamos sempre atrás de experiências agradáveis à visão, à audição, ao tato, ao paladar e ao olfato. E também não paramos de buscar conquistas, admiração, status, poder, vitórias – ou seja, realizações pessoais.
Mas esses tipos de felicidade são instáveis e tirânicas: precisamos sempre de mais, e não podemos obter sempre, e a intensidade da felicidade vai diminuindo, e no fim acabamos em uma gloriosa ressaca física e moral de segunda-feira.
No carnaval me esbaldei com esses dois tipos de felicidade: estimulações sensoriais (especialmente usando o corpo e a língua) e realizações pessoais (as conquistas, a admiração dos amigos pelas conquistas). Mas no dia seguinte aquilo passou, e você precisa de mais um bloco. Mais estimulações e conquistas. Mas uma hora o corpo pede arrego. E você dá até uma enjoada e de repente não quer mais ouvir falar de carnaval por um bom tempo.
Estou usando o exemplo do carnaval, mas ressalto novamente que todas as nossas experiências comuns resultam, quando bem sucedidas, nesses dois tipos de felicidade. Ambas instáveis e tirânicas.
“A VIDA É ASSIM MESMO, NADA É PRA SEMPRE”
É o que muita gente me fala.
Mas é aí que tá o ponto: segundo os budas existe o nirvana. Existe uma felicidade que transcende qualquer experiência transitória. Que é infinitamente superior a qualquer prazer sensorial ou realização pessoal – que, por serem impermanentes, são por definição causa de sofrimento.
A felicidade do nirvana, quando alcançada, não oscila mais. Você entra no nirvana e fica nesse estado de paz perfeita, pra sempre. O corpo morre mas a mente continua no nirvana, e aí você pode inclusive continuar emanando corpos em benefício dos seres. Já pensou?
O desapego, o terceiro tipo de felicidade, é o que vai nos conduzindo para o nirvana. E o treinamento da mente, é claro, que permite o próprio desapego e o surgimento da sabedoria (a visão das coisas como realmente são) e da compaixão ilimitada por todos os seres.
Eu ainda não alcancei o nirvana, galera, mas pelas descrições dos budas e mestres, e pelos vislumbres de paz que dá pra alcançar com a meditação e o yoga, parece que a coisa é quente, muito quente.
Ou melhor, refrescante.
E O CARNAVAL, CABE NO NIRVANA?
Bem, o nirvana é o estado natural da mente de todos os seres, é a natureza livre que está na base de toda a nossa sensação de identidade e de realidade. Então tudo cabe no nirvana. O Buda poderia, se quisesse, pular carnaval.
Nós, porém, enquanto seres presos no samsara, faríamos bem em focar mais no tipo 3 de felicidade. Focar no treinamento da mente. No desapego. Focar no nirvana.
Isso significa deixar de pular carnaval?
Não necessariamente. Mas com certeza nossa obsessão pelas felicidades 1 e 2 não vai gerar bons resultados. Melhor começar a jogar energia pra felicidade 3, do desapego, e pro nirvana.
E assim, sendo o nirvana superior a qualquer experiência comum, um buda talvez nem se interesse pelo carnaval. Ou por qualquer coisa comum.
O Buda vê a natural perfeição de todas as coisas o tempo todo. Nem existem mais coisas comuns para um buda. Mas ele não precisa se engajar em nada: ele (ou ela, buda não tem gênero) simplesmente repousa na paz perfeita e vê todas as coisas como manifestações mágicas da realidade absoluta.
É como se um buda vivesse no melhor bloco de carnaval e o bloco nunca acabasse e ele nunca cansasse e estivesse sempre tocando Minha Pequena Eva, aquele êxtase coletivo maravilhoso.
Esta é provavelmente uma analogia ruim, mas quem curtiu o carnaval e entrou em êxtase cantando sobre o fim da aventura humana na Terra entendeu.
Enfim, viva o carnaval.
Mas o nirvana existe, segundo os budas. E parece que é incomparavelmente melhor que o carnaval ou qualquer outra coisa que conheçamos.
Eu não sei vocês, mas eu acho que vale a pena investigar essa hipótese.
Por Pedro Renato
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