
O caminho para o nirvana
No último texto falei sobre a possibilidade de o nirvana – a felicidade definitiva – existir e dialoguei com as hipóteses de que o nirvana ou é muito difícil, ou é uma fantasia. O caminho para o nirvana ficou para a parte dois do texto. Vamos a ele.
O PRIMEIRO ENSINAMENTO DO BUDA
O Buda Sakyamuni (que é o Buda histórico) abandonou a vida de príncipe e passou seis anos meditando nas florestas da Índia.
“Seis anos meditando nas florestas da Índia” pode soar como algo pacífico ou idílico, mas na verdade é extremamente difícil e perigoso. Imagine dormir durante esse tempo todo ao relento, à mercê de predadores sanguinários e insetos venenosos, com parca comida e sujeito a intempéries. Se nós, quando tentamos meditar em um lugar com mosquitos ou moscas inofensivos já falhamos miseravelmente, imagine meditar enfrentando dificuldades muito maiores.
Pois o Buda meditou, olhando para a própria mente com a firme determinação de encontrar a libertação do sofrimento e da morte. E encontrou.
Depois de passar alguns dias curtindo o êxtase supremo da iluminação – justíssimo – o Buda se levantou e começou a ensinar o caminho. Seu primeiro ensinamento, dado aos seus antigos companheiros de meditação (os cinco ascetas, que faziam práticas muito duras com os próprios corpos, o que não conduz à iluminação), foram as célebres quatro nobres verdades:
- A vida como conhecemos é sofrimento
- Esse sofrimento é construído pela mente
- É possível se libertar do sofrimento
- O Nobre Caminho Óctuplo que conduz ao fim do sofrimento
O Caminho Óctuplo envolve a motivação correta (alcançar a libertação para ajudar todos os seres a se libertarem também), beneficiar os seres por meio de pensamentos, falas e ações corretas e manifestar as qualidades da mente – amor, compaixão, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria.
Então o Buda logo de cara já deu um diagnóstico da nossa situação – complicada porém há uma luz no fim do túnel – e um roteiro para alcançar a libertação completa do sofrimento e da confusão.
Esse caminho tem sido testado, estudado, desenvolvido, explicado, aprofundado por grandes praticantes e mestres e mestras budistas há 2.600 anos. O próprio Buda deixou uma vastidão de ensinamentos e instruções diferentes, para que os variados tipos de seres humanos possam encontrar os que funcionam melhor nesse ou naquele momento da vida.
Ou seja, as instruções e ensinamentos que conduzem à liberação estão disponíveis – e isso é um evento cósmico muito raro, segundo os mestres. Investigar se realmente eles funcionam e conduzem à libertação e felicidade é, me parece, uma atitude sensata.
COMO ASSIM A VIDA QUE CONHECEMOS É SOFRIMENTO?
Esse é um ponto importante. Se a gente não entender a primeira nobre verdade, não teremos sequer vontade de buscar o nirvana. Se eu não percebo a vida como sofrimento, por que raios eu daria bola para um método que conduz à liberação do sofrimento?
Para resolver essa questão, o Buda descreve os seis reinos do samsara, pelos quais estamos vagando, segundo ele, de uma vida a outra desde tempos imemoriais.
- Temos este reino que a gente conhece bem, o dos humanos, caracterizado por seres que tem muito desejo/apego.
- Temos o reino dos animais, que também conhecemos relativamente bem, caracterizado pela preguiça e pela limitação – os animais aprendem a sobreviver e em geral não avançam muito além disso na compreensão das coisas.
Mas também temos outros quatro reinos:
- O dos deuses, seres que desfrutam de prazeres maravilhosos e têm vidas muito longas, porém costumam cair nas emoções perturbadoras do orgulho e da indiferença.
- O dos semideuses, que também desfrutam da bonança mas são mais belicosos, têm inveja dos deuses e vão à guerra contra eles.
- O dos fantasmas famintos, seres cuja emoção característica é a carência, têm muita fome e sede e não conseguem jamais se satisfazer.
- O dos infernos, onde habitam seres dominados pelo ódio e pela raiva, que só veem inimigos por todos os lados e passam por sofrimentos bizarros.
ESSES REINOS SÃO REAIS OU SÃO ESTADOS PSICOLÓGICOS?
Foi essa a pergunta que o Lama Padma Samten fez ao seu mestre, Chagdud Tulku Rinpoche, que deu uma resposta bem budista: são estados psicológicos; porém são reais.
Na visão budista todas as “realidades” são, no fundo, estados psicológicos. Vemos o mundo com a nossa mente, e cada um faz isso a seu modo, com seus referenciais. Não há, portanto, uma realidade objetiva.
Assim, as descrições dos seis reinos do samsara podem ser usadas para entendermos nossa própria vida dentro de um corpo humano. Todos passamos pelas emoções características de cada reino algumas (muitas) vezes. Se um dia ficamos em uma área VIP qualquer com comida e bebida liberada, todas as nossas necessidades sendo atendidas prontamente, isso é um pouco como o reino dos deuses. Se um dia ficamos putos com alguém e xingamos e desejamos coisas horríveis pra pessoa e quem sabe até batemos nela, eis o reino dos infernos.
De todo modo, pelas descrições detalhadas dos ensinamentos budistas, acredito que sejam sim “reais” esses reinos, no sentido de existirem seres diferentes de nós, em outros tipos de corpos e dimensões, com experiências muito intensas correspondentes às emoções predominantes em cada reino.
Segundo os ensinamentos, podemos renascer em qualquer um desses reinos – estamos fazendo isso, aliás, há incontáveis vidas, desde um tempo sem princípio. Vidas longas e maravilhosas como deuses, depois queda para algum reino como o humano, depois talvez uma queda ainda maior, para o reino dos animais ou dos fantasmas famintos. Depois podemos subir para reinos melhores, somente para cair de novo dali a algum tempo. Isso é o samsara, a existência cíclica.
Abaixo, a representação clássica budista dos seis reinos, chamada de roda da vida. Temos, em sentido horário e começando às 12h, o reino dos deuses, humanos, fantasmas famintos, infernos, animais e semideuses:
Do lado de fora da roda da vida – e dentro também, tentando ajudar os seres – aparecem os budas. A mensagem deles é: isso não é a única possibilidade. É possível dissolver a ilusão do samsara e alcançar a paz perfeita, o nirvana, saindo do ciclo de mortes e renascimentos por karma, que inevitavelmente conduz a sofrimentos, muitos deles bem pesados.
OS ESTÁGIOS DA MEDITAÇÃO
A roda da vida não representa, contudo, toda a existência na visão budista. Ela está dentro do mundo do desejo, onde os seres de todos os reinos estão mais sujeitos à ignorância, ao apego e à aversão.
Existem mais dois mundos, segundo a classificação do Buda: os mundos da forma e da não forma.
Os mundos da da forma são reinos habitados por seres que alcançam estágios avançados de meditação e transcendem os desejos grosseiros, mas ainda possuem forma sutil. Eles estão associados aos estados de absorção meditativa chamados de jhanas.
Há 4 níveis desses estados meditativos avançados, cada um com as suas características.
1º jhana: êxtase e felicidade surgidos da atenção sustentada e do afastamento dos objetos dos sentidos; a meditadora concentra a mente de tal forma que alcança um êxtase e felicidade supramundanos, muito superiores a qualquer prazer que a gente conhece.
2º jhana: a meditadora abandona a atenção aplicada e sustentada do primeiro jhana e alcança uma segurança interna e a perfeita unicidade da mente; estão presentes êxtase e felicidade nascidos da concentração.
3º jhana: o êxtase é abandonado e se entra num estado de felicidade sem o êxtase, acompanhada pela atenção plena, plena consciência e equanimidade.
4º jhana: a felicidade é abandonada e se entra num estado de nem felicidade nem sofrimento, com atenção plena e equanimidade purificadas; nesse estado temos a felicidade da ausência de felicidade ou sofrimento rsrs.
Segundo o Lama Padma Samten, esses estados são tão impressionantes e maravilhosos que parecem a iluminação. Porém não o são; apesar de muito profundos, sutis e cheios de êxtase e felicidade, esses estados são construídos pela mente. São artificiais e, portanto, passam.
Por isso o Buda continuou meditando, em busca da iluminação perfeita, definitiva, que não é impermanente. Ele foi então refinando sua prática, abandonando os aspectos construídos da sua meditação, e aí foi parar nos mundos da não forma.
Os reinos do mundo da não forma são puramente mentais, sem forma física, onde os seres existem em estados de consciência extremamente refinados. Os quatro estágios do mundo da não forma, chamados de realizações imateriais, são:
Base do espaço infinito: a meditadora abandona a equanimidade do quarto jhana e entra e permanece na consciência de que o espaço é infinito.
Base da consciência infinita: a meditadora abandona a percepção do espaço infinito e entra e permanece na consciência de que a consciência é infinita.
Base do nada: a meditadora supera a base da consciência infinita e fica consciente de que ‘não há nada’, entrando e permanecendo na base do nada.
Base da nem percepção nem não percepção: a meditadora supera a base do nada, entrando e permanecendo na base da nem percepção, nem não percepção.
Essas realizações imateriais são estados meditativos extremamente sutis, difíceis de serem alcançados.
Mas o Buda compreendeu que ainda são estados artificiais, construídos pela mente. Abandonando as percepções que dizem respeito à base da nem percepção nem não percepção (pois é, imagine a sutileza das percepções sobre uma base da mente onde não há nem percepção nem não percepção rsrs), o Buda entrou na cessação das percepções e sensações.
Esse estado é chamado de nirodha, quando a mente simplesmente cessa. “E eu vi através da sabedoria, que as impurezas foram destruídas”, disse o Buda sobre esse estado. Ou seja, as ilusões, obscurecimentos e sofrimentos que surgem na mente foram completamente destruídos.
Isso é o nirvana, finalmente, certo?
Bem, aí temos um debate quente entre escolas budistas. Na visão do Lama Padma Samten, o nirodha também é um estado construído. O nirvana ou iluminação é a capacidade de entrar e sair desses estados todos. O próprio Buda declara isso no Tapussa Sutta:
“Ananda, enquanto eu não havia alcançado e emergido dessas nove realizações sucessivas em sequência para frente e para trás, eu não reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação neste mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo. Mas assim que alcancei e emergi dessas nove realizações sucessivas em sequência para frente e para trás, então reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação neste mundo … seus príncipes e povo. Surgiram em mim a visão clara e a sabedoria: ‘Minha libertação é inabalável. Este é o último nascimento. Não haverá mais vir a ser a nenhum estado.”
Quem entra e sai desses estados? É a consciência atemporal, que não está sujeita ao tempo, à vida ou à morte. Os Budas repousam nessa consciência que é, enfim, nossa natureza mais profunda.
O QUE FAZER COM TODAS ESSAS INFORMAÇÕES
Bem, esse é o meu ponto: se o nirvana é uma fantasia, um delírio, uma abstração, porque raios os Budas e mestres budistas desenvolveram um sistema complexo de classificação dos fenômenos, além de métodos profundos e super bem detalhados para alcançar esse objetivo?
Apesar do caminho ficar cada vez mais sutil, ele não é vago. Há uma descrição detalhada dos métodos e dos estados que devem ser alcançados no caminho da liberação da mente.
O budismo não é uma religião revelada. Não há uma tábua de mandamentos prescritos diretamente por Deus.
O budismo é um método vasto e variado de investigação da mente e da realidade que, segundo os mestres, conduz à liberação completa de todas a confusões, ilusões, sofrimento e insatisfatoriedades. Conduz à condição de paz perfeita e imortalidade.
Não sugiro aqui que a gente simplesmente acredite. Porém, considerando o nível de sofisticação, detalhe e profundidade dos ensinamentos, bem como os resultados práticos que podem ser atingidos com relativa facilidade quando a gente começa a estudar e meditar (mais tranquilidade, paz, alegria, relaxamento, compaixão, sabedoria, equilíbrio etc.), me parece que o nirvana é um tópico que merece ser investigado.
Porque se ele existir mesmo, se tudo isso for verdade (e a sabedoria evidente dos mestres budistas indica que sim, isso deve ser mesmo verdade), temos aqui algo realmente espantoso. Insuperável.
Por Pedro Renato
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