Morango do amor, refúgio e cenários mentais

Às vezes, no silêncio da noite,

eu fico imaginando…

…qualquer coisa que seja mais interessante do que estou vivendo agora.

É difícil, mas nessas horas de fabulações mentais aleatórias (muitas vezes noturnas), às vezes consigo reconhecer que estou, na verdade, buscando escapar do momento presente. Como se eu estivesse sempre buscando algo — em outro lugar, outro cenário, outra experiência — que me traga um pouquinho de êxtase. De realização.

No budismo, “realização” é uma palavra importante. Ela se refere àquilo que se encontra ao atingir marcos significativos no caminho espiritual. Dizer que um mestre “tem alguma realização” significa que, ao longo de sua jornada, ele descobriu algo de profundo valor — algo digno de ser compartilhado para beneficiar os seres.

E então eu percebo: vivo buscando uma espécie de realização nas coisas mais triviais. Na minha próxima viagem. No morango do amor do amor que estou pensando (e tentando não pensar rs) em ir buscar agora na padaria. Nos próximos inscritos que estão chegando ao nosso canal do YouTube (aliás, você já foi lá conhecer?).

Cada pensamento que me prende, cada cenariozinho mental que aparece, parece ser um espacinho onde busco abrigo. Um refúgio. Na esperança de encontrar aí essa realização.

Lembro de algo que o mestre Lama Padma Samten disse uma vez: nós mesmos colocamos inúmeras condições para nos permitirmos ser felizes. Ter um trabalho legal e respeitável, que pague bem. Ter uma família. Um relacionamento saudável. Fazer sexo regularmente. E por aí vai… Quando, na verdade, essa felicidade estaria disponível agora mesmo — sem que nenhuma dessas condições fosse realmente necessária.

Se eu dissesse agora que ganhei 10 milhões de dólares e vou transferir tudo para sua conta, para você fazer o que quiser, como você reagiria? Qual emoção surgiria imediatamente?

Essa felicidade que você quase sentiu agora, só de imaginar essa generosidade fictícia, tocou de leve o seu coração. Por que precisamos de um símbolo tão específico para acessar essa felicidade? Ela já está aqui, agora.

Se você imaginar, neste instante, aquele chocolate maravilhoso — sim, aquele — você consegue quase sentir o prazer de comê-lo, mesmo sem ele estar presente. Não é o chocolate em si que produz a sensação (até porque minha amiga que detesta chocolate não sentiria a mesma coisa, ainda que comesse o mesmíssimo chocolate). Essa sensação está aqui, agora. Mas a gente não acredita.

Seguimos achando que precisamos do morango do amor, do chocolate, dos 10 milhões de dólares. Mas a realização que buscamos — aquela que os mestres encontraram — vai muito além dessas pequenas brechas de êxtase que abrimos com um doce.

Meu antigo mestre de Kung Fu e Chi Kun dizia que somos como garrafinhas de água no oceano. Quando algo nos deixa felizes ou realizados, abrimos um pouco a tampinha da garrafa. E por essa frestinha, nosso pequeno corpinho se enche de água — que é a energia abundante e disponível do oceano à nossa volta. Ele dizia que, ao praticar Chi Kun ou meditar, a gente consegue abrir totalmente essa tampinha, permitindo que a água entre de forma plena, nos preenchendo com essa energia que está em todo lugar.

Eu gosto dessa imagem da garrafinha.

O refúgio, o colinho da mamãe, o chocolate mágico

No budismo, existe o conceito de refúgio. É aquilo que buscamos quando estamos aflitos, querendo nos salvar, nos proteger. E, para mim, estamos buscando refúgio o tempo todo — na maioria das vezes, em coisas insatisfatórias.

O Buda indica que tomemos refúgio nas três joias, o Buda, o Dharma e a Sanga. Nada de chocolate, namorado ou emprego que pague bem. Afinal, nenhuma dessas coisas vai realmente trazer realização, satisfação, segurança real. Aprendi isso amargamente rs

Maaaaaaaas…

No livro sagrado Vigyan Bhairav Tantra, o deus Shiva ensina que é possível alcançar a realização por meio das pequenas e aparentemente banais experiências de prazer. Como, por exemplo, comer um doce. A prática meditativa nos convida a focar completamente no êxtase dessas experiências, e através desse foco, é possível acessar a grande realização.

E isso, na verdade, não está tão distante do que aprendemos no budismo.

O significado secreto de Dharma é Aparências — e é por meio delas que a realização se manifesta. Talvez encontrar refúgio nas aparências, compreendendo que elas são expressões mágicas da mente primordial, seja também um caminho para a realização.

Enfim, joguei aqui, sem grandes pretensões, essas palavras soltas que têm passado pela minha cabeça neste meu primeiro texto aqui no Substack do Videogame Cósmico. Espero que elas reverberem por aí como têm reverberado por aqui.

Nessa minha jornada meio confusa, tentando não buscar refúgio nos morangos do amor da vida, me pergunto: será que o verdadeiro refúgio pode ser encontrado justamente transcendendo o morango do amor — e, ao mesmo tempo, usando o morango do amor como caminho?

Hahahaha

Por Dafne Ramos

***

Se você quiser praticar com a gente e estudar budismo, com ou sem morangos do amor, vem conhecer a Ekadanta.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *