Intimidade é uma merda?

Sim. Mas também pode ser uma ferramenta poderosa na nossa prática espiritual.

Passei duas semanas no Rio Grande do Sul nesse fim de ano. Nasci e cresci lá e moro em São Paulo faz 9 anos, então o natal e o ano novo viraram, pra mim, menos papai noel e ceia e fogos de artifício e mais matar a saudade da mãe, pai, irmãos, tios, primos, amigos etc. Depois de 26 anos vendo a galera todo dia, toda semana, ver só uma vez por ano é uma experiência sempre intensa.

Eu vinha gostando da qualidade da minha prática nos últimos tempos. O que é uma raridade: em geral os praticantes, eu incluso, são duros consigo mesmo, são os críticos mais ferozes de sua prática espiritual – ou falta dela (ó a crítica aí).

Tem uma mestra budista que fala que os praticantes fazem duas coisas: praticar e se lamentar que não estão praticando.

Pois nos últimos tempos eu estava gostando da minha prática. Constância boa, tempo de prática mais estendido e o consequente aprofundamento da meditação e dos estudos.

Porém, bastou o avião pousar em Porto Alegre para que minha autolouvada regularidade na prática decolasse para o espaço.

Rever a galera e botar o papo em dia toma tempo, é verdade, mas eu exagerei. Assim que acordava já pegava o celular, e esse ato banal dava o tom pro resto do dia.

Assim, não é que eu não pratiquei nada. Eu e minha mãe fizemos as meditações conduzidas pelo Lama Padma Samten nos últimos dias de 2024 (você pode fazer também clicando aqui), fizemos yoga na grama, em alguns dias fiz minha contemplação (meditação + estudo de textos budistas) solitária. Visitamos o magnífico templo budista da cidade de Três Coroas e eu fiz mantras e prostrações durante o passeio.

Ah, e no primeiro dia do ano chegamos cedinho no Centro de Estudos Budistas Bodisatva de Viamão para meditar, fazer as preces budistas e depois ouvir a palestra de abertura do ano do Lama.

Recapitulando agora, até mantive uma prática razoável, ainda que bem aquém do que eu gostaria. Tudo muito bem, tudo muito bom.

Exceto por um detalhe: a prática não é as coisas externas que fazemos.

Foi o que o Lama falou na sua palestra. Um(a) praticante não é definido pelas coisas externas que faz. Mesmo que medite muitas horas, faça muitos mantras, retiros, prostrações, tenha estátuas e imagens dos budas na sua casa… Nada disso importa se a(o) praticante não tiver a visão profunda sobre a realidade.

A visão é, basicamente, as 4 nobres verdades:

1 – Tudo que surge, cessa. Por isso todas as coisas comuns da vida são insatisfatórias.

2 – A causa da insatisfação é o apego. Nos agarramos nas coisas, mas tudo gira, e aí sofremos.

3 – A liberação desse ciclo é possível.

4 – Há um caminho para alcançar a liberação.

É claro que é preciso praticar pra estabilizar a visão das 4 nobres verdades – ou seja, não é simplesmente uma questão de escolha do tipo ‘eu quero ver as 4 nobres verdades’ e shazam, resolvido. Pra lembrar delas e ver o mundo a partir dessa lente profunda e libertadora, é preciso treinar a mente.

Por isso os atos externos de um(a) praticante são importantes, especialmente meditar e estudar os ensinamentos.

Mas praticar e ter vislumbres das 4 nobres verdades se manifestando na vida também não é o suficiente. 

Às vezes eu faço uma prática muito boa, e me sinto incrivelmente presente e energizado e feliz e tranquilo ao final da sessão de estudo e meditação, e parece até que eu vou alcançar o nirvana rapidamente. Aí eu vou jogar futebol e minha mente é facilmente tomada pelas emoções perturbadoras e ações não virtuosas. Em vez de paz e tranquilidade, na minha mente passam a desfilar a raiva, o julgamento, a maledicência etc. etc.

É claro: é nas situações do dia a dia, no contato com o mundo e os seres que o habitam, que colocamos à prova as qualidades da mente desenvolvidas na meditação. 

Estar pacífico e sorridente ao final de uma prática de yoga é relativamente simples; basta você fazer as posturas e ir relaxando a mente.

Agora tente manter o sorriso tranquilo no rosto dentro do ônibus lotado ou jogando futebol ou no meio de uma reunião interminável no trabalho ou… nas festividades de fim de ano da sua família. (Se você passa sozinha o fim do ano, em geral também não é muito fácil manter um sorriso no rosto).

No meu caso as festividades nem foram o problema, mas sim o dia a dia mesmo. Em vários momentos me peguei sendo rude com a minha mãe e a minha irmã, com quem eu convivi por mais tempo nas duas semanas em que fiquei no sul. Nada grave, eu acho, mas sabe aquelas patadinhas que a gente se autoriza a dar nos mais íntimos, com quem a gente convive mais?

Essas patadinhas são resultado de uma mente que opera a partir da ignorância (avidya), a ilusão básica de que somos realmente separados uns dos outros. Da ignorância surgem o apego e a aversão, e então eu quero que as coisas sejam do meu jeito, e quero que minhas ideias prevaleçam, e se alguém falar algo que não se encaixa muito bem na minha visão de mundo há grandes chances de eu ser ríspido com a pessoa.

Esses 3 venenos da mente (ignorância, apego e aversão) operam nas mentes de todos nós, embora os manifestemos de forma particular.

E tem como ser diferente?

Essa é a terceira nobre verdade: tem. É possível, com o treinamento da mente, mudar o seu modo de operação. Em vez de operar a partir de ignorância, apego e aversão, podemos operar a partir da liberdade natural da mente, que não se fixa à identidade nenhuma. Dessa liberdade natural brotam a sabedoria e a compaixão por todos os seres. Quando estabilizamos a operação a partir da liberdade, da sabedoria e da compaixão, é só correr pro abraço. Estamos iluminados.

Por isso a convivência com os mais próximos é tão rica no caminho espiritual. O aprofundamento da intimidade faz com que a gente se permita ser mais natural e espontâneo, o que muitas vezes significa ser escroto. Mas isso é bom: quando a escrotidão vem à tona, temos uma chance preciosa de reconhecer uma tendência negativa habitual da nossa mente e, então, nos motivarmos a praticar mais para dissipar todos os venenos que surgirem.

Acima, eu e minha mãe em frente a uma réplica do Palácio da Luz de Lótus, a morada de Guru Rinpoche.

Esse ano pretendo aprofundar minhas ações externas de praticante – meditar mais, estudar mais, fazer mais yoga, mantra, pranayama.

Pretendo praticar o máximo de generosidade possível, beneficiar os seres de todas as formas que eu puder.

E pretendo colocar em prática os ensinamentos no encontro com os outros seres, especialmente, no âmbito mais desafiador, o âmbito da intimidade.

Quem vem comigo?

 

Por Pedro Renato

 

Quem quiser fazer essas práticas e estudos comigo, cola na Ekadanta

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