Faz sentido falar de iluminação no meio de tanta injustiça social?

Fui criado em uma família de militantes de esquerda e gosto de ler sobre política desde criança. Em 2016 comecei a escrever colunas de opinião política em um blog de esquerda, o que fiz até 2023 (pra quem tiver curiosidade, tá aqui). A Dafne, minha parceira aqui no projeto Videogame Cósmico, também é de esquerda e uma feminista estudiosa do tema.

Foi natural, portanto, o nosso projeto espiritual também acabar adentrando nas águas agitadas da política. Fazemos isso com gosto, aliás – sempre nos inquietou essa espiritualidade alienada, alheia às lutas por dignidade e sobrevivência dos seres. Ou pior: espiritualidade de direita, espiritualidade fascista.

É que, para quem estuda política com o mínimo de honestidade intelectual, é muito evidente que a direita opera para manter (ou piorar) o status quo de concentração de riqueza e poder em pouquíssimas mãos, enquanto a esquerda luta por uma distribuição mais justa dos recursos e do poder. Logo, como a base de qualquer espiritualidade séria é a unidade/interdependência entre todos os seres, uma ideologia política que aposta no egoísmo como motor da vida em sociedade é absolutamente antiespiritual.

A galera da direita e especialmente da direita fascista (que no Brasil é o bolsonarismo) está completamente presa na ilusão da separatividade hardcore, a ponto de pregar a eliminação de minorias sociais. Assim, a gente acredita que faz parte da prática da compaixão contribuir para a luta contra esse tipo de ideologia política.

E então, sempre que nos manifestamos politicamente, como por exemplo quando detonamos o Bolsonaro, chovem críticas lá no nosso perfil do instagram e uma galera para de seguir a gente. Faz parte. Não deixaremos de nos manifestar por causa disso, é claro.

 

MAS A GENTE RECEBE CRÍTICAS DA ESQUERDA TAMBÉM 😀

E esse texto é mais sobre estas.

As críticas da galera da esquerda são bem diferentes, é claro. O pessoal da direita ou reclama da gente falar de política ou entra no debate pra detonar a esquerda, chamar o Lula de ladrão etc.

Já os críticos de esquerda manifestam o seu descontentamento com os próprios ensinamentos budistas.

As críticas variam, mas percebo uma base comum: a galera considera que alguns ensinamentos são desconectados da realidade, alheios às injustiças sociais.

Esse foi o tom da crítica mais recente: “Faz sentido falar em iluminação no meio de tanta miséria, de sofrimento real? Mesmo a iluminação parece ser para poucos…”

 

EXISTE UMA REALIDADE CONCRETA E OBJETIVA?

As críticas vindas da esquerda partem de um pressuposto metafísico que não é sequer percebido, quanto mais questionado. É o pressuposto de que há uma realidade objetiva externa a nós.

Falar em nirvana, em libertação da mente, em iluminação, parece fantasioso, delirante. As pessoas têm fome; não têm onde morar; não têm educação e saúde de qualidade. Essas coisas seriam problemas reais. Falar em libertação espiritual diante desse cenário seria delirante e alienado.

Bem, essa premissa da existência de uma realidade concreta e objetiva é questionada frontalmente pelo budismo. Na visão dos Budas, não há realidade objetiva. A realidade que parece externa é inseparável da mente dos seres. Portanto, nenhum sofrimento é realmente real, por assim dizer, por mais sólido que pareça.

Além disso, todos os seres presos no samsara, ou seja, todos os que não acordaram para sua própria natureza búdica, ou seja, quase todos nós, sofrem. Acreditar que ter riqueza é se libertar do sofrimento é um erro crasso – ou você acha que há algum tipo de felicidade na mente do Elon Musk, com sua ganância descontrolada, seu comportamento errático e megalomaníaco, seus discursos de ódio, seus gestos nazistas e seu abuso de entorpecentes?

Na visão budista, todo sofrimento de todos os seres brota dos três venenos da mente: apego (desejo), aversão (ódio), ignorância (não perceber que a realidade que parece externa é, na verdade, inseparável da minha mente).

Então, dentro dessa visão ampla das coisas, não importa muito se você é rico, pobre ou classe média: caso os três venenos dominem sua mente, você inevitavelmente vai sofrer.

 

ISSO SIGNIFICA UMA CONFORMAÇÃO COM AS COISAS DO JEITO QUE ESTÃO?

Claro que não.

Por isso, inclusive, nos manifestamos politicamente; é evidente que é melhor pra todo mundo se os recursos forem repartidos mais igualitariamente. Deveríamos sim buscar construir uma sociedade sem ricos e sem pobres, com todo mundo – tipo todo mundo mesmo, sem deixar ninguém pra trás – tendo garantido o mínimo para viver com dignidade. Trabalhar por um mundo melhor e mais justo faz parte da prática da compaixão, não há dúvidas.

No entanto, os ensinamentos budistas apontam para uma realidade muito mais ampla do que a concebida pelas ideologias políticas. Segundo o Buda estamos há incontáveis vidas zanzando pelo samsara. Já estivemos no reino dos infernos e passamos por sofrimentos piores do que os filmes de terror trash podem sonhar. Já fomos animais, deuses guerreiros, seres famintos e sedentos que não encontram satisfação para sua carência. Já fomos deuses e desfrutamos de prazeres além da imaginação. Porém, como não alcançamos o nirvana, não entendemos como a existência cíclica funciona, não treinamos a nossa mente o suficiente e continuamos presos na busca por felicidades que brotam de experiências impermanentes, como as proporcionadas pela riqueza material.

Não compreendemos que uma felicidade que surge de algo impermanente só pode ser impermanente. Assim que surge, começa a ser engolida pela impermanência. E então precisamos de outra dose, e outra, e outra, e esse processo de busca infinita por algo que escapa por entre os dedos é exatamente o samsara.

Vendo as coisas a partir dessa visão ampla, a situação econômica na qual estamos, mesmo que dure por esta vida inteira, é muito efêmera. Esta vida acaba em um piscar de olhos; se não treinarmos a mente e praticarmos o Darma agora que o encontramos (e este é um evento cósmico muito raro), não temos chance de garantir a liberação do samsara ou um bom renascimento após a morte desse corpo.

Tudo isso pode parecer muito esotérico, mas a análise dos sofrimentos do samsara e do caminho para a liberação é central dentro do budismo. Estudar este grande esquema das coisas e as diferenças entre a vida dentro do samsara e a vida de um ser iluminado é crucial para termos motivação para praticar.

Não poderíamos nós, portanto, abrir mão de falar sobre o sofrimento generalizado, que pega todos os seres sem exceção – ou alguém escapa de doença, envelhecimento e morte? Não poderíamos também deixar de falar sobre o caminho para superar esses sofrimentos que parecem inevitáveis aos olhos dos seres comuns, sob pena de retirar o próprio sentido da existência dos ensinamentos.

O objetivo do budismo não é proporcionar aos seres uma vida material confortável nesta vida. Este é um objetivo louvável para uma corrente política (e por isso, repito, somos de esquerda aqui no Videogame). Mas o budismo trabalha em outra dimensão. A proposta é a liberação completa da mente de todo o sofrimento, confusão e insatisfatoriedade e o atingimento da onisciência.

 

A ILUMINAÇÃO É PARA TODOS

É claro que as condições socioeconômicas influenciam até mesmo nas possibilidades das pessoas acessarem os ensinamentos e fazerem sua prática espiritual – mais um motivo para jamais votar na direita em qualquer eleição. As condições materiais são importantes.

O conselho do Buda é beneficiar os seres de todas as formas possíveis, em todas as direções. Então tá valendo dar comida pra quem tem fome, participar de movimentos sociais, de atos políticos, partidos que lutem por justiça social, grupos voluntários que acolhem pessoas em situação de rua ou ONGs de defesa dos animais.

No entanto, por mais que ajudemos os seres nas suas dificuldades comuns, tem um aspecto comovente que não muda: eles continuam presos ao samsara.

Por isso os mestres ensinam que o melhor jeito de ajudar todo mundo, humanos e não humanos, é alcançar logo a iluminação. A iluminação é a felicidade definitiva, genuína. Um Buda simplesmente transcende a morte, alcança a imortalidade. Sua mente vai viver em uma espécie de êxtase cósmico eternamente.

Não precisamos escolher. Podemos (e é uma boa ideia) beneficiar os seres dos jeitos comuns, mundanos, e também praticar para alcançar a iluminação o mais rápido possível e, assim, ajudar outros seres a também alcançarem.

Aliás, no budismo Mahayana (que significa O Grande Veículo), há um enfoque especial na compaixão. Nesta tradição aparecem os chamados bodisatvas, praticantes que fazem o voto de alcançar a iluminação e continuar no samsara ajudando os seres a também alcançarem a libertação. É comum inclusive encontrarmos, dentro do Mahayana, críticas a outras tradições budistas, que focam demasiadamente na liberação individual.

A meta de ajudar todo mundo a se libertar do sofrimento é apresentada como um motor para alcançar o objetivo final; é a melhor motivação para a prática.

O que faz todo o sentido: se no caminho da iluminação nos damos conta de que não somos identidades individuais separados do resto, nem faz sentido se iluminar sozinho. Há uma unidade básica na vida, uma interdependência. Só faz sentido alguém se iluminar se for pra ajudar todo mundo a se iluminar também.

Felizmente a natureza búdica pode ser encontrada em todas as mentes de todos os seres, da sua avó a um brócolis, da girafa ao pulgão, dos ricos aos pobres e passando pela classe média.

A iluminação é para todos, já está em todos. E, em tempos de muita injustiça social, como o nosso, faz mais sentido ainda falar de iluminação, como bem comentou um seguidor da nossa página.

Continuaremos falando de iluminação, de nirvana, de meditação, de paz interior, e divulgando os métodos preciosos que os Budas deixaram para nos guiar. E também defendendo um mundo mais justo. Mesmo sabendo que nenhum tipo de sofrimento é realmente real, o nosso trabalho (de todos os que querem trilhar o caminho da libertação) é aliviar o fardo dos seres, da forma que for.

Que o capitalismo seja superado por um sistema mais igualitário, em que as pessoas possam viver em paz, ter seus alimentos, saúde e educação garantidos. E possam ter mais tempo para desfrutar da vida e, especialmente, fazer suas práticas espirituais.

Qualquer que seja a situação econômica, social ou psicológica da pessoa, as práticas e os ensinamentos budistas podem ajudar a alcançar o alívio transitório e o definitivo para o sofrimento.

O trabalho dos Budas é beneficiar os seres; nós damos um passo, eles dão cem na nossa direção, dizem os mestres.

Todos podem alcançar a iluminação, porque todos já têm a natureza búdica dentro de suas mentes.

 

Por Pedro Renato

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