É possível ficar verdadeiramente confortável com o não eu?

Essa ótima pergunta surgiu num post nosso, e vale a pena explorá-la com calma e carinho.

Primeiro o básico:

Que história é essa de não eu?

O não eu é um dos ensinamentos mais importantes do Buda, e certamente um dos mais revolucionários.

A ideia de que somos um eu separado do resto da existência é basilar na nossa experiência de mundo. Agimos o tempo todo a partir da premissa de que somos um indivíduo, alguém mais ou menos determinável, separado dos outros seres e dos objetos externos.

Muitas tradições espirituais vão apontar que não somos o corpo ou a personalidade atuais, ou ao menos não somos apenas o corpo e a personalidade. No catolicismo a alma é a parte espiritual do ser humano, criada por Deus; no espiritismo nossa natureza essencial é o espírito, uma essência divina; algumas escolas iniciáticas e a galera da nova era falam de um ‘eu superior’; em diversas tradições indianas temos o conceito de atman, a essência imutável e eterna de um ser vivo, considerada uma centelha da divindade (Brahman).

Aí chega o Buda e fala “Galera, sinto informar mas não tem nada disso. Eu não ensino o atman, eu ensino o anatman. Não há um eu fixo e imutável, nem no corpo nem em outro lugar.” (Não é uma citação literal tá, até porque é improvável que o Buda utilizasse o vocativo ‘galera’, mas o Buda realmente ensina isso.)

É uma afirmação forte, que gera debates acalorados até hoje, 2.600 anos e muitas guerras e mudanças de estilos literários e copas do mundo (de muitos esportes) depois.

O Buda sacudiu as tradições indianas baseadas nos Vedas, porque ele declarou que alcançou a verdadeira iluminação, um estado insuperável. É possível que praticantes de outras tradições também tenham alcançado a mesma iluminação? É possível e talvez até provável, já que todos temos a mesma natureza búdica, como lembra o Lama Padma Samten, então não é preciso ser budista para alcançar a meta.

Mas é inegável que os métodos e as explicações sobre o caminho para a libertação deixadas pelo Buda são impressionantes; sem paralelos.

Mas o Buda não aconselha que tenhamos fé cega. Não se trata de acreditar no atman ou no anatman. A questão é investigar, na própria experiência e na própria mente, se as descrições oferecidas realmente correspondem à realidade das coisas.

O não eu, sendo um dos tópicos mais importantes, requer uma dedicação especial nossa para investigar e descobrir a verdade. Pessoalmente, desde que eu tive contato com esse ensinamento, há uns 7 anos, venho investigando; até agora nem sinal do eu ou do atman ou da alma. Tudo que eu identifico como eu na minha experiência parece sujeito à transformação. O personagem que aparece nos enredos que minha mente constrói com os pensamentos desaparece em seguida, e depois surge outro, e outro, e outro, infinitamente. Mesmo o meu corpo nunca é o mesmo: espinhas, dores, ausência de dores, prazeres, tensões, relaxamentos, tudo vai se alternando, e aparentemente a cada dia estou um pouco mais velho e, sinto dar essa notícia, tudo indica que uma hora meu corpo vai parar de funcionar e então será consumido pelo fogo ou pelos vermes, desaparecendo para todo o sempre.

Ou seja, não tem um eu fixo nas histórias contadas pelos pensamentos, nem nas emoções correspondentes, nem no corpo.

A descrição do Buda parece muito acurada: temos uma mente livre e vazia que é capaz de criar infinitas identidades e realidades nas quais essa identidades operam. Não somos os mesmos de um, cinco ou quinze anos atrás. Não somos os mesmos quando estamos com as amigas, os contatinhos ou as tias distantes que a gente vê só em casamento ou enterro. Como é possível manifestar tantas identidades, mudar tanto, inclusive os gostos, trejeitos, ideias, visões de mundo?

Segundo os ensinamentos budistas, isso é possível porque nossa real natureza é a própria liberdade. Temos uma mente livre, completamente vazia de conteúdos, mas que é capaz de criar incontáveis realidades.

E, de fato, se até aqui não encontrei evidência de que há uma entidade fixa dentro de mim, é inegável a presença da liberdade natural da mente (expressa pelas mudanças constantes nas nossas identidades) e da sua capacidade criativa (como revela o próprio surgimento das identidades e realidades todas). Então tudo indica que os Budas revelaram uma verdade realmente muito profunda: a base da nossa mente é vazia de qualquer conteúdo, portanto livre de qualquer fixação. Essa mente, apesar de vazia, é infinitamente criativa, pois faz todas as realidades surgirem como se fossem sólidas e reais. Essa mente não é pessoal; ela opera em todos os seres, humanos e não humanos. Por isso, não tem como apontar um eu realmente existente.

AGORA, A PERGUNTA DE MILHÕES: É POSSÍVEL FICAR VERDADEIRAMENTE CONFORTÁVEL COM O NÃO EU?

Pensemos.

De onde vem o nosso desconforto? A insatisfatoriedade? Os sofrimentos físicos e psicológicos?

Se a gente reparar, na base de todas essas experiências ruins tem alguém: o eu. Não um eu realmente existente, mas um eu construído pela capacidade criativa da mente, ao qual nos fixamos e o qual consideramos ser real. E justamente por isso – fixação ao eu e achar que ele é real – a gente oscila, a gente sente desconforto, fica irritado, com raiva, a gente sofre com as dores da vida.

Os personagens que a gente cria passam por todo o espectro possível dos dramas da vida, felicidade, sofrimento, dor, prazer, amor, ódio etc. Se a gente achar que é o personagem, vamos viver tudo isso, oscilar nessa montanha russa maluca até o fim dos tempos.

Agora, se não tem um eu real, e se for possível perceber isso, o que acontece com todo o desconforto, insatisfatoriedade e sofrimento? Bem, se não há alguém sentindo a dor, a dor existe? Existe a irritação se não tem ninguém irritado?

Pois é.

É por isso que os seres que alcançam estados de consciência avançados são capazes de feitos que consideramos sobrehumanos, sobrenaturais. Eles transcenderam as limitações da dualidade, que é a ilusão de acharmos que somos seres realmente existentes separados de todo o resto. Eles transcenderam o eu ilusório. Por isso são capazes de feitos fantásticos: se desaparece a ilusão de um eu fixo e sólido limitando as suas capacidades, suas capacidades aumentam consideravelmente.

Um mestre indiano muito conhecido, Sri Ramana Maharishi, fez uma cirurgia pra retirar um tumor do braço sem anestesia. A lógica é a seguinte: se eu não sou meu corpo, não tenho porque temer a dor, não tenho porque tomar anestesia. Vi essa história contada em uma série de fotos e quadros na parede do ashram dele, na montanha Arunachala, na Índia, e nunca esqueci. Já fiz algumas cirurgias, e se o pós operatório é sempre difícil, imagine fazer a própria cirurgia sem anestesia. Surreal.

Sri Ramana não era budista, mas claramente alcançou um nível elevado de realização espiritual. Ele já não se identificava com o corpo há muito tempo. Sua mente transcendeu a dor.

Sri Ramana Maharishi após a cirurgia pra retirar um tumor do braço: a plenitude no olhar de quem transcendeu a dor.

E a nossa essência?

Numa live sobre o assunto que fiz esses dias no Instagram surgiu essa questão: eu me sinto uma farsa, e a minha autenticidade etc. A gente não gosta quando percebe que somos diferentes com cada pessoas e em cada situação. Achamos que somos falsos, que não temos coerência.

Mas isso é inevitável!

Claro que não tô falando de ser duas caras, de elogiar na frente da pessoa e pelas costas falar mal – isso é melhor evitar, dá karma. Mas é absolutamente natural que a gente aja diferente nas diferentes situações da vida, com os diferentes seres que encontramos.

Não faz sentido nenhum buscar uma essência, uma identidade totalmente coerente. É melhor simplesmente andar no mundo desfrutando da liberdade natural da mente e tentando beneficiar os seres por todos os lados, da forma que for mais adequada a cada momento.

Portanto, é claro que é possível ficar realmente confortável com o não eu. O eu é a fonte do desconforto.

O não eu é a verdadeira natureza das coisas. Se não tem eu, não tem fixação, não tem decepção, não tem medo, não tem ansiedade, não tem dor.

Não tem nem morte. Tem o repouso na natureza da realidade, que é a própria liberdade natural da mente, totalmente desperta e livre do sofrimento.

Sejamos todos não eu (rsrsrs).

 

Por Pedro Renato

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