Cachorros, pessoas e amor incondicional
O amor dos cachorros por seus companheiros humanos é incondicional?
Esse é um lugar comum que aparece muito em conversas aleatórias sobre a experiência maravilhosa de conviver, amar e ser amado por um cão. Muitas dessas conversas se dão entre completos desconhecidos em meio a um passeio na rua, que depois de parcas frases revelam nesgas de sentimentos profundos e íntimos, ao se derreterem por essa espécie tão intimamente ligada à espécie humana.
Basta, porém, uma breve análise para percebermos que não, o amor dos cachorros não é incondicional.
A Lenis Lenilsons, por exemplo.
Assim que ela me viu pela primeira vez, lá por 2017 ou 2018 na casa da Dafne, imediatamente subiu no sofá, se posicionou ao meu lado e, com sua pata direita irrequieta, exigiu que eu fizesse carinho. E era carinho non stop: bastava eu me distrair e parar com o carinho e ela me cutucava com insistência e até uma certa agressividade. “Continue fazendo carinho, humano que eu acabei de conhecer, apenas continue.”
No início da pandemia passamos a morar juntos, eu ela e a Dafne. O dia inteiro em casa durante meses, anos, e é claro que mãos livres eram um acinte, um ultraje: “se sua mão estiver livre, humano, você deve fazer carinho em mim. Ponto.” E o trabalho, que paga as contas e as rações especiais e selecionadas? É preciso usar as duas mãos pra digitar no teclado, mas se ela estivesse no meu colo, nada importava, os textos, os processos, “você sabe, Pedro Renato, que fazer carinho em mim é mais importante do que qualquer outra coisa, você sabe muito bem disso.”
Agora não moramos mais juntos, mas nos vemos com bastante frequência e a dinâmica continua. Só que ela tá cada vez mais temperamental. Ela pede uma, no máximo duas vezes pra eu retomar os carinhos na cabeça ou nas costas ou na barriga. Se eu não atender a requisição, ela simplesmente se retira do recinto, orgulhosa, não sem dar uma bufada ou uma murmurada em tom de reclamação.
Além disso, tem a comida, é claro. Comida todo dia, de preferência variada. E manter a fraldinha sempre limpa, não vou vou ficar fazendo minhas necessidades no meio da sujeira.
A Lenis deixa bem claro que seu amor por mim e pela Dafne é condicional: se fizermos nossas tarefas direitinho, ela até nos lambe pra mostrar o seu contentamento.
E isso não é exclusividade dela, é claro. Os cachorros se afeiçoam a quem lhes oferece algum tipo de ganho, seja comida, proteção ou carinho. Assim como os seres humanos gostam de quem lhes oferece alguma coisa em troca, seja comida, proteção, carinho ou um rosto simétrico e um corpo bem delineado para desfrutar.
Agora, porque eu gosto da Lenis de volta? O que ela me oferece?
Basicamente, ela fica feliz quando eu apareço, tem algum grau de confiança em mim e lambe meu nariz. (Desde que eu esteja fazendo carinho; no instante em que eu paro com o carinho, ela para a lambida. Pra rir tem que fazer rir, eu sei.)
Não parece muito, certo? Uma abanada de rabinho, menos latidos irritados do que ela dá para outros seres humanos, lambidinhas. É isso o que ela oferece. Ainda assim, quando esses dias recebi da cardiologista a notícia de que a Lenis tem um problema no coração e o fato de que ela um dia vai morrer ficou bem claro na minha mente, eu andei pelas ruas de São Paulo, chorando.
Há um evidente desequilíbrio aí. A Lenis sequer se esforça pra agradar. É orgulhosa, rabugenta, temperamental. Carinhosa só enquanto estiver recebendo carinho. E eu, ainda assim, a amo loucamente.
Então, mesmo dentro dessa lógica dos amores condicionais na qual estamos todos imersos, seja nas relações com outros humanos ou com seres não humanos, eu acho que às vezes dá pra gente ter um vislumbre do que é o amor incondicional.
Uma analogia clássica pro amor incondicional é que ele é como o sol: brilha e atinge a todos, sem se importar em receber nada em troca. Simplesmente flui, sem distinguir nem excluir ninguém.
O amor incondicional é libertador, justamente pelo seu caráter incondicional: você não precisa de nada em troca. Você só ama. Ponto. A ação já está completa logo de saída. Não importa quem seja a pessoa, o que ela fez. Você ama todos, infinitamente, indefinidamente, sem parar. Deve ser tipo tomar a melhor bala do cosmos e a brisa não passar nunca.
Grandes mestres espirituais falaram desse amor e o expressaram por meio de palavras e ações.
A Lenis, com toda sua rabugentice e reclamações recorrentes, às vezes me dá um vislumbre de um amor gigantesco que parece não ter muita correlação com alguma coisa que eu possa receber em troca.
(E agora ela tá tomando remédio pro coração, tá super bem, e espero que a gente possa continuar nesse jogo de amor condicional com vislumbres do incondicional por muito tempo.)
*
Por Pedro Renato