
As crenças dogmáticas da ciência
No meu período de ateísmo, que foi dos 14 aos 27 anos de idade, me tornei um entusiasta da ciência. Via vídeos e lia livros das referências intelectuais dos céticos/ateus, como os do Carl Sagan e do Richard Dawkins, e me empolgava com o espírito investigativo honesto e aberto dos cientistas.
A atitude de não acreditar nas coisas simplesmente porque vêm de alguma tradição ou porque são impostas pelo ambiente religioso ou cultural é, de fato, sábia.
No entanto, depois de um ritual de ayahuasca em 2016 – conheci uma menina do Tinder na sexta e no sábado fomos juntos para o ritual, quem nunca – deixei de ser ateu, passei a explorar tradições espirituais variadas e no fim acabei me tornando budista.
O budismo não é exatamente uma religião (nem uma filosofia nem ciência); eu vejo-o mais como um método de compreensão da mente e da realidade e de eliminação do sofrimento e da insatisfatoriedade da vida. A recomendação do Buda é para não acreditar nas palavras dele (até porque isso nem funciona) e para testar os ensinamentos. O que for útil deve-se adotar, o que não funcionar deve-se descartar.
Então não sou mais um cético/ateu, porém fui cair numa linha espiritual que aprecia e até mesmo exalta o espírito investigador necessário à boa ciência.
A PRESUNÇÃO DA CIÊNCIA
Quando alguém se autoelogia constantemente, isso naturalmente gera alguma desconfiança. Se a pessoa realmente é honesta, justa, bondosa etc., porque ela precisa propagandear isso o tempo todo?
É mais ou menos o que aconteceu com a ciência.
É evidente que o estabelecimento da ciência ocidental moderna como visão de mundo dominante representou um avanço em relação ao obscurantismo religioso que vigorava antes da revolução científica e do iluminismo (por volta do século XVII). Adotar a razão e a observação como bases do conhecimento é, por óbvio, mais inteligente do que simplesmente acreditar em interpretações pueris e convenientes do que consta em algum livro sagrado qualquer.
Porém, desde então a ciência em geral passou a adotar uma postura um tanto quanto arrogante, do tipo “nós somos a razão última, nós somos a sabedoria definitiva, nossa investigação é sempre neutra e imparcial e portanto o que não se encaixa nos nossos modelos é falso”. É claro que o discurso da ciência não é explicitamente assim, mas no fim quase sempre é o que os cientistas estão dando a entender.
O trunfo da ciência seria a sua abertura ao erro. Uma descoberta precisa ser revisada pelos pares, ou seja, testada por outros cientistas e funcionar, para ser considerada válida. A ciência não se baseia em nenhum livro sagrado ou mandamento, mas sim na observação do mundo, um empirismo radical que não deixa brechas para as crendices desprovidas de evidências.
MAS A CIÊNCIA É NEUTRA E OBJETIVA?
Essa é uma pergunta que se impõe, já que a propaganda científica apresenta a neutralidade e objetividade na observação dos fenômenos como dois de seus grandes trunfos.
O mestre budista Lama Padma Samten foi professor de física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul por longos anos. Quando foi estudar física quântica e os escritos de Niels Bohr, se deu conta dos limites da abordagem da ciência para a compreensão do universo.
A física quântica coloca em cheque um dos pressupostos básicos das ciências naturais, o de que existe um mundo objetivo lá fora, totalmente independente do observador. As partículas quânticas como o elétron podem se comportar como partícula ou como onda, a depender da existência ou não de um detector observando.
Se o papel do observador é crucial a ponto de alterar a forma de manifestação das partículas, é evidente que isso pode ter implicações em toda a ciência. É possível realmente uma observação totalmente neutra e objetiva dos fenômenos? Se a própria medição altera a realidade medida, todos os pressupostos do cientista – e seu objetivo, sua base teórica, o instrumento que utiliza, sua interpretação dos dados – certamente também influenciam no que é observado.
O Lama Samten, ao perceber que a ciência meio que jogou pra baixo do tapete as descobertas da física quântica para continuar se autopropagandeando como a observadora imparcial da realidade, foi estudar budismo, que lhe pareceu ter uma compreensão mais profunda dos fenômenos. Hoje ele é um mestre budista, e costuma citar Bohr e física quântica durante os seus ensinamentos sobre a natureza da mente e da realidade.
UMA CRENÇA BASEADA APENAS EM FÉ
Há uma crença no cerne da ciência ocidental moderna que a impede de avançar nas suas investigações sobre a realidade e os fenômenos – especialmente o fenômeno da consciência. É a ideia de que todos os fenômenos, incluindo a consciência, surgem a partir de processos físicos, químicos e biológicos observáveis.
Um dos lugares em que eu encontrei esse debate sobre os limites da ciência foi no livro do Lama Alan Wallace chamado Investigando a Mente, em que ele tece críticas contundentes ao materialismo científico – que ele define como a visão de mundo que afirma que: a realidade é exclusivamente material (ou seja, pode ser reduzida a processos físicos, químicos e biológicos), a ciência física é a única forma válida de conhecimento (o que exclui de pronto fenômenos não mensuráveis ou subjetivos, como os que podem acontecer na meditação); a mente é um produto do cérebro.
A crença de que a consciência e os fenômenos mentais são causados por processos neurofisiológicos no cérebro, por exemplo. Essa é uma ideia que domina a comunidade científica, a academia e a nossa cultura em geral. Mente virou praticamente um sinônimo de cérebro.
No entanto, Wallace aponta que mesmo defensores proeminentes da hipótese de que todas as experiências mentais surgem do cérebro, como o filósofo John Searle, confessam que não há evidências suficientes:
“Nós … precisaríamos de uma teoria neurobiológica da consciência muito mais rica do que qualquer coisa que agora podemos imaginar para supor que poderíamos isolar as condições necessárias para [o surgimento da] consciência” [John Searle, The rediscovery of the mind, 91, 76-77.]
Para Wallace “a hipótese de que a mente nada mais é do que uma função ou propriedade emergente do cérebro, e de que a consciência é produzida unicamente pelo cérebro, é uma expressão de fé, não fundamentada por evidências empíricas conclusivas”. O autor afirma que o materialismo científico
implica a suposição ideológica de que todos os fenômenos naturais podem ser compreendidos dentro das categorias materialistas de espaço, tempo, matéria e energia; e assume que todos esses fenômenos podem ser adequadamente explorados usando instrumentos de tecnologia que façam medições objetivas, físicas e quantificáveis.
Repare que Wallace usa a expressão “suposição ideológica”, bem como “crença metafísica” em outros momentos do livro, para se referir a essa crença básica da ciência atual. São termos muito bem empregados, a meu ver, já que a ciência não chegou a essa conclusão baseada em evidências, mas sim orienta suas investigações a partir dessa premissa.
Como essa premissa de que tudo surge do mundo físico observável não pode ser questionada jamais, sob pena de se estar saindo do terreno da ciência, entramos em um beco sem saída. Se não são permitidos outros tipos de investigação – como a longa contemplação da mente por meio de técnicas refinadas de meditação, por exemplo – é impossível descobrir qualquer coisa que fuja das categorias materialistas de espaço, tempo, matéria e energia.
EVIDÊNCIAS IGNORADAS PELA CIÊNCIA
Se a mente é apenas um fenômeno baseado no cérebro, as experiências mentais subjetivas não devem ter influência causal sobre o corpo, certo? Wallace questiona, então: como explicar o efeito placebo?
Essa crença é enfraquecida pelo chamado efeito placebo, que de fato deveria ser chamado de “efeito da expectativa do sujeito”, pois sua eficácia causal decorre de processos mentais subjetivos, incluindo fé, confiança, desejo e expectativa. A única coisa certa sobre os efeitos do placebo é que eles não são efeitos do placebo! Atualmente, existem evidências científicas convincentes de que o efeito da expectativa influencia não apenas a experiência subjetiva, como diminuir a depressão e a dor, mas também exerce influências mensuráveis no corpo, que estão de acordo com as expectativas da pessoa. Por exemplo, estudos mostraram que, quando os pacientes receberam o placebo, a liberação de opioides endógenos era desencadeada, o que diminuía a dor. Em outro estudo, pacientes com mal de Parkinson receberam uma injeção de placebo, e sua expectativa de que isso aliviasse os sintomas desencadeou uma “liberação substancial de dopamina endógena”, que trouxe o efeito esperado, “comparável ao das doses terapêuticas de levodopa … ou apomorfina”. Simplesmente acreditar e esperar que a substância injetada alivie seus sintomas desencadeia exatamente os mecanismos no cérebro que provocam isso, pois uma diminuição na produção de dopamina endógena contribui para aliviar os sintomas do mal de Parkinson. A historiadora Anne Harrington, de Harvard, questiona contundentemente como “a crença de uma pessoa em um tratamento falso poderia enviar uma mensagem para sua glândula pituitária para liberar seus próprios produtos farmacêuticos endógenos”.
Outro exemplo de fenômeno que a ciência não consegue explicar (e se recusa a investigar pois está fixada aos seus próprios pressupostos) é o da experiência de quase morte. Assim como acontece no sonho, nas experiências de quase morte podemos ver objetos sem que o nosso olho esteja envolvido na operação. Na visão budista, nossa capacidade de ver cores e formas depende fundamentalmente da consciência, e não do olho.
Segundo Wallace, no campo das experiências de quase morte há relatos de pacientes que
viram e ouviram eventos na sala cirúrgica enquanto estavam temporariamente com morte encefálica, e seus relatos subsequentes do que testemunharam foram corroborados pela equipe médica que estava presente. Esses pacientes geralmente relatam que suas experiências perceptivas extracorpóreas são muito mais vívidas do que qualquer outra experiência anterior, e suas memórias dessas experiências permanecem muito claras nos anos seguintes.
Não há explicação científica de como uma pessoa cujo córtex cerebral esteja sem atividade poderia ver cores objetivamente verificáveis em uma sala compartilhada com seres humanos normais e conscientes, sem fótons atingindo os olhos dessa pessoa e ativando o córtex visual. Além disso, a possibilidade de percepção extrassensorial é incompatível com as crenças do materialismo, e isso pode explicar o fato de muitos cientistas cognitivos ignorarem a evidência de tais exemplos. Mas esse dogmatismo, que ignora as evidências empíricas simplesmente porque são incompatíveis com as próprias crenças, é contrário aos ideais mais elevados da investigação científica.
Como Richard Feynman escreve: “É somente por meio de medições refinadas e experimentação cuidadosa que podemos ter uma visão mais ampla. E então vemos coisas inesperadas: vemos coisas que estão distantes do que esperávamos – bem longe do que poderíamos ter imaginado… Para que a ciência progrida, precisamos da capacidade de experimentar, de honestidade ao relatar resultados – os resultados devem ser relatados sem que alguém diga como desejaria que fossem… Uma das maneiras de deter a ciência seria só fazer experimentos em regiões onde as leis são conhecidas. Mas cientistas pesquisam com mais diligência e com o maior esforço exatamente naquelas áreas em que parece mais provável demonstrar que as teorias estavam erradas. Em outras palavras, tentamos provar que estávamos errados o mais rápido possível, porque somente dessa maneira podemos progredir.”
O PAPEL DA CONSCIÊNCIA NO COSMOS
Ao se fixar a uma visão de mundo e não admitir a hipótese de estar errada, a ciência abandona completamente o espírito investigativo aberto necessário para que se avance nas descobertas sobre a realidade. E se a mente apareceu antes do que chamamos de matéria, como afirma o budismo?
O materialismo científico sustenta que uma pessoa humana realmente existe, como um conjunto complexo de matéria, que evoluiu para um corpo com um sistema nervoso que dá origem à consciência – um epifenômeno que é simplesmente extinto na morte. O budismo sustenta que não há pessoa, corpo, vida, morte ou consciência realmente existentes – todos os fenômenos condicionados são vistos como originando-se de forma interdependente, de acordo com causa e efeito. E o dançarino principal desse espetáculo não é a matéria não-senciente, mas a própria consciência.
Wallace, B. Alan. Investigando a mente: Análise e insight segundo a Essência Vajra de Düdjom Lingpa (Portuguese Edition) (p. 163). Lúcida Letra. Edição do Kindle.
Esta não é uma hipótese restrita a tradições espirituais. Segundo Wallace,
Um crescente corpo literário de físicos e biólogos preocupa-se com o chamado princípio antrópico, que observa que um grande número de constantes aparentemente arbitrárias, mas muito específicas na natureza – como o ponto de congelamento da água ou a ligeira redução de densidade quando a água congela, fazendo o gelo flutuar em vez de afundar –, precisava ser quase exatamente como observamos para que a vida que conhecemos existisse. Se essas constantes fossem um pouco diferentes, a vida como a conhecemos não estaria presente. Essa visão sugere que, em vez de o universo físico inanimado ser fundamental e dar origem secundária à vida, pode ser exatamente o oposto. Talvez um princípio vital, como o prāṇa, seja fundamental e responsável por dar origem a mundos físicos nos quais os seres vivos poderiam se manifestar e evoluir. Devemos reconhecer que ainda não existem explicações científicas comprovadas para a origem da vida. Existem muitas especulações diferentes, todas não testáveis.
O Buda, depois de meditar por seis anos nas florestas da Índia, afirmou ter visto todas as suas vidas passadas e explicou que “todos os fenômenos são precedidos pela mente, provêm da mente e consistem na mente”. Não é o caso, portanto, da mente brotar dos processos físicos: o fluxo mental de um ser manifesta um corpo físico, depois outro tipo de corpo, depois renasce em um novo corpo, e assim sucessivamente, desde um tempo incalculável.
É uma visão radicalmente diferente da postulada pela ciência; porém, muitos outros seres, budistas e não budistas, alegam ter alcançado esse conhecimento por meio da observação da própria mente e de outras técnicas, que expandem os limites usuais da consciência humana.
A atitude verdadeiramente científica diante dessas hipóteses é, evidentemente, aplicar os métodos e investigar. Considerar simples superstição e se manter agarrada na própria crença, baseada na fé, de que tudo é apenas subproduto de processos físicos, é apenas fundamentalismo, tão fanático quanto o religioso que a ciência gosta de antagonizar.
O VERDADEIRO ESPÍRITO CIENTÍFICO
Esses dias devorei um livro inteiro em dois dias, coisa que não acontecia há muito tempo. O livro se chama A Serpente Cósmica – O DNA e a Origem do Saber, do antropólogo Jeremy Narby. Acho que esse livro reacendeu o entusiasmo pelo espírito científico do Pedro de vinte e poucos anos porque percebi no autor o fervor da investigação científica honesta, que não se contenta a ficar presa a seus dogmas.
Ele começa o seu relato contando sobre a experiência de morar com indígenas peruanos nos anos 80, em uma pesquisa de campo para o seu doutorado. Narby confessa que era um jovem meio arrogante naquela época, ao se interessar mais pelas questões materiais, como a louvável luta pela demarcação dos territórios indígenas, e dar uma menosprezada nas questões metafísicas.
Quando os ayahuasqueros da tribo lhe contavam que as plantas se comunicavam com eles e davam as instruções sobre as plantas que curam cada tipo de doença, ou que os espíritos que vivem nas plantas, na floresta, nos animais e nos humanos também se comunicavam, ele não levava aquilo muito a sério.
Depois de voltar para o mundo europeu civilizado, o antropólogo empreendeu uma pesquisa minuciosa sobre as visões metafísicas dos povos da América do Sul e do mundo, encontrando semelhanças impressionantes. Depois ele enveredou para a comparação entre essas visões metafísicas e as descobertas da biologia molecular sobre o DNA, o que gerou a sua hipótese de que as visões metafísicas comuns a muitos povos da humanidade estão conectadas com as descobertas da ciência sobre a base comum da vida, que é o DNA. Os xamãs acessariam então, por meio de técnicas variadas (como sonhos ou substâncias alucinógenas) um nível de realidade molecular, e desse nível obteriam informações profundas sobre a vida.
Apesar da sua pesquisa detalhada em muitas áreas do conhecimento e da evidente verossimilhança de muitas de suas alegações, Narby afirma, ao final do livro, que sabe que sua proposta sequer será considerada pela ciência, pois esta simplesmente descarta qualquer explicação sobre a vida que não esteja dentro do escopo definido a priori como o único digno de investigação.
TUDO MUDA
Mas a ciência, assim como tudo na vida, inapelavelmente muda.
Hoje a teoria da evolução darwiniana é consenso científico. No entanto, muitos cientistas a questionam, afirmando que o mero acaso na replicação de genes pelo DNA não é capaz de explicar o processo complexo e, matematicamente, extremamente improvável do surgimento e profusão das incontáveis formas de vida diferentes que habitam a Terra.
Questionar a teoria da evolução é quase uma heresia; mas esse é só um jeito de ver as coisas, uma explicação parcial e evidentemente bastante incompleta (ou mesmo errada – Narby cita, no seu livro, críticas interessantes à teoria de Darwin). Certamente outros paradigmas surgirão.
A história da ciência é a história do erro, diz o Lama Samten. Uma teoria se sucede à outra, porque as falhas da anterior são expostas.
Se a abertura para a possibilidade de se estar errado realmente existir, isso é uma boa coisa.
De todo modo, ainda bem que o espírito verdadeiramente científico de investigação da mente e da realidade não é monopólio de ninguém.
Podemos lançar mão dele e empreender nossas próprias investigações, a começar pela nossa própria mente. Entendendo como as coisas funcionam mais profundamente, poderemos ter mais chance de viver melhor e ajudar todo mundo a fazer o mesmo.
Por Pedro Renato
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