A vida extraordinária de Dipa Ma

Acabamos de participar, eu e a Dafne, de um retiro com o Lama Padma Samten. No retiro encontramos alguns amigos de sanga (comunidade budista), como a Mari, que conhecemos no primeiro retiro que a gente fez com o Lama, há uns três anos.

Almoçamos juntos depois do final do retiro em um restaurante na Liberdade, bairro japonês de São Paulo. No meio das conversas a Mari falou da biografia de uma mestra budista indiana: Dipa Ma. Disse que era espetacular e falou, muito brevemente, sobre a vida dela.

No dia seguinte, comprei o livro de um sebo, mas enquanto não chega a cópia física, estou lendo a versão epub que a Mari me mandou. É, de fato, espetacular, e neste texto vou tentar resumir a extraordinária vida da mestra, para que seus feitos possam inspirar ainda mais pessoas.

Vou dividir o texto em três partes, nomeadas com o título dos três primeiros capítulos, que são os que contam a vida de Dipa.

Para quem quiser ler o livro, ele se chama Dipa Ma – The Life and Legacy of a Buddhist Master, e foi escrito pela Amy Schmidt – acredito que não haja versão em português. Todas as citações a seguir são deste livro.

 

NASCIDA NO BUDISMO

Nani Bala Barua – nome de batismo de Dipa Ma – nasceu no dia 25 de março de 1911, numa vila de Bengala Oriental (hoje Bangladesh). Na região havia uma mistura de diferentes tradições religiosas, com hindus, muçulmanos e budistas convivendo pacificamente.

Apesar de a prática de meditação ter praticamente desaparecido quando ela nasceu, algumas famílias ainda observavam rituais e costumes budistas. Era o caso da família de Dipa Ma.

A tradição de dana (generosidade) era praticada regularmente na casa de Nani, com seus pais doando para monges budistas, brâmanes hindus e qualquer um que pedisse por esmolas. Foi por meio de seus pais que a jovem menina aprendeu o significado de doar para os outros – que quando você doa, não há distinções. Você doa para todo mundo.

Desde criança Nani já demonstrava um forte interesse pelos rituais budistas; gostava de ir aos templos e servir os monges. Apesar de crianças normalmente serem mantidas afastadas dos monges e seus afazeres, por conta da forte fascinação da menina, a ela era permitido oferecer comida e esmolas, lavar seus pés e sentar com eles enquanto comiam.

Em vez de brincar com bonecas, como era comum para uma garota indiana, Nani preferia criar mundos de fantasia que envolviam oferendas de comida e flores para Buda, preparar o altar e fazer cerimônias religiosas.

Ela não tinha muito interesse em comer; em vez de uma refeição, comia um pedaço de fruta ou um biscoito. Nani perguntava com frequência para seus pais: “Vocês sentem fome? O que é fome?”.

Por outro lado, seu apetite por conhecimento era insaciável. Mesmo não sendo costume em sua vila as meninas irem para a escola, não conseguiram mantê-la afastada, e mesmo doente dava um jeito de ir (um caso raro de criança que “mata” a doença para ir a aula).

Porém, com 12 anos de idade, Nani saiu da escola e casou com Rajani Ranjan Barua, um engenheiro de 25 anos – segundo as normas da sua cultura, as meninas tinham que casar antes da primeira menstruação. Então ela foi morar com seus sogros, como era o costume, e passou a conviver basicamente só com eles, já que o marido foi, uma semana depois do casamento, retomar seu emprego na Birmânia, um país vizinho.

Depois de dois anos de tristeza e saudade da família, Nani foi colocada em um barco e se mudou para Rangoon, cidade da Birmânia, para morar com um homem que ela conheceu por uma semana em um novo país, que falava uma língua que ela não entendia.

No início ela se sentia muito sozinha, chorava com frequência e tinha medo do marido e do ato sexual (ninguém nunca tinha lhe falado sobre essa parte do casamento). No entanto, Rajani se manteve sempre gentil com Nani, e ela passou a vê-lo como um ser humano raro e, diria mais tarde, como seu primeiro professor.

Os dois se apaixonaram, mas surgiu um problema grave para a tradição daqueles dias: Nani não engravidava. Apesar de Rajani aceitar a ausência de uma prole, a família dele não achava aquilo certo. Tentaram casá-lo com outra moça, mas ele se recusou e falou para Nani não se preocupar nunca mais sobre ter filhos.

Ele sugeriu que ela tratasse todas as pessoas que encontrasse como seus próprios filhos – conselho que se manifestaria de formas marcantes muitos anos depois.

Aos 18 anos Nani recebeu a notícia de que sua mãe morrera de repente. Ela havia visto sua mãe apenas duas vezes depois de se mudar para a Birmânia, e sofreu com sua morte por muitos anos. Logo após a notícia, Nani teve febre tifoide, que foi mal diagnosticada e mal tratada, o que ocasionou uma hospitalização que durou meses. Bijoy, o filho de 18 meses de sua mãe, passou a morar com Nani e Rajani, que o criaram como filho.

Nani e Rajani eram figuras ativas na comunidade budista. Além de seguir os cinco preceitos budistas — abster-se de matar e causar dano; de tomar o que não é livremente oferecido; de má conduta sexual; de discurso falso; e de usar intoxicantes — eles mantinham rituais diários, como o canto de sutras (ensinamentos). Também patrocinavam dois banquetes comunitários por ano e ofereciam esmolas aos monges locais. Eles eram especialmente reconhecidos por sua generosidade: pagavam os estudos de crianças de famílias carentes e ofereciam seu próprio lar como abrigo para pessoas sem-teto.

Desde o dia em que chegou a Rangoon, Nani sentiu um forte desejo de meditar. Embora as meninas geralmente não estudassem meditação, ela pedia repetidamente permissão a Rajani para aprender. Todas as vezes, ele sugeria que ela esperasse até ser mais velha, seguindo o costume tradicional indiano de adiar a prática espiritual para anos posteriores, quando os deveres de chefe de família estivessem cumpridos.

Mesmo sem falar birmanês, Nani encontrou maneiras de buscar uma educação budista em seu novo país. Sempre que encontrava um livro religioso em bengali, ela o lia e estudava por conta própria. Para outros livros, ela contava com a ajuda de seu sobrinho de treze anos, Sunil, que traduzia os textos budistas clássicos do birmanês para o bengali. Sunil ficava impressionado com a dedicação de Nani aos estudos e com a forma como ela se lembrava de tudo o que ele lia para ela. (Anos depois, após uma série de testes psicológicos, sua inteligência foi considerada altamente excepcional.)

Em 1941, quando Dipa tinha 30 anos, a Birmânia foi atacada por tropas japonesas. Foi um tempo de medo, escassez e dificuldades. Depois do fim da guerra, em 1945, Bijoy voltou para a Índia e, com a casa vazia, Nani pensou que era um bom momento para aprender meditação.

Porém, um milagre aconteceu: depois de 20 anos tentando, Nani estava grávida. Mas a criança ficou doente e morreu apenas três meses depois do nascimento. Soterrada pelo luto, Nani desenvolveu uma doença cardíaca.

Quatro anos depois ela ficou grávida novamente, de novo uma menina, que se chamaria Dipa. É daí que vem o apelido de Nani, Dipa Ma, ou “mãe de Dipa”. Como Dipa significa “luz”, o novo nome de Nina também significa “Mãe da Luz”.

Mais tarde, Nina ficaria grávida novamente, desta vez de um menino, mas a criança morre no parto, fazendo com que Nani entrasse novamente em um luto inconsolável.

Em um ato de desespero, Nani exigiu o direito de aprender meditação para aliviar sua tristeza. Mais uma vez, seu marido disse que ela era muito jovem. Ela ameaçou sair de casa escondida, e Rajani, junto com vários vizinhos, começou a vigiá-la.

No entanto, a vigilância logo se tornou desnecessária. Acometida por hipertensão, Dipa Ma não conseguiu sair da cama, muito menos de casa, por vários anos. Durante esse período, ela esperava morrer a qualquer momento.

Rajani, sozinho, cuidou de sua esposa e do bebê Dipa, enquanto continuava a trabalhar em tempo integral como engenheiro. O estresse da situação acabou por sobrecarregá-lo. Uma noite, em 1957, ele chegou em casa do trabalho e disse à esposa que estava se sentindo mal. Horas depois, ele faleceu de um ataque cardíaco.

***

DESPERTAR

Em dez anos, Dipa Ma havia perdido dois filhos, o marido e a saúde. Em seus quarenta e poucos anos, era uma viúva com uma filha de sete anos para criar sozinha. Ambos os pais estavam mortos, a Índia ficava longe, e ela estava sobrecarregada de luto e confusão. “Eu não sabia o que fazer, para onde ir, ou como viver”, disse ela. “Eu não tinha nada nem ninguém para chamar de meu.” Meses se passaram, e tudo o que ela conseguia fazer era chorar, segurando uma foto de Rajani no colo.

Nos anos seguintes, sua saúde continuou a piorar. Sua condição tornou-se tão grave que ela sentiu que sua única esperança de sobreviver era praticar meditação. Ela refletiu sobre a ironia de sua situação. Quando era jovem, saudável e ávida para meditar, foi impedida de fazê-lo. Agora, responsável por uma criança e totalmente exausta, em desespero e enfrentando a morte, sentia que não tinha outra opção, que morreria de desgosto a menos que fizesse algo sobre o estado de sua mente. Ela perguntou a si mesma: “O que posso levar comigo quando morrer?” Ela olhou para seu dote, seus sáris de seda e joias de ouro, até mesmo para a filha. “Por mais que eu a amasse, eu sabia que não poderia levá-la… Então eu disse: ‘Deixe-me ir ao centro de meditação. Talvez eu possa encontrar algo lá que possa levar comigo quando morrer’.”

Nesse ponto mais baixo de sua vida, o Buda apareceu para ela em um sonho. Uma presença luminosa, ele suavemente entoou um verso do Dhammapada, originalmente oferecido como consolo a um pai que lamentava a morte de seu filho:

Apegar-se ao que é querido traz tristeza,

Apegar-se ao que é querido traz medo.

Para quem está inteiramente livre de apego,

Não há tristeza nem medo.

Quando Dipa Ma acordou, sentiu-se clara e calma. Ela sabia que deveria aprender a meditar, não importava o estado de sua saúde. Ela entendeu o conselho do Buda: se quisesse verdadeira paz, teria que praticar até estar livre de todo apego e tristeza. Embora tivesse realizado rituais budistas por toda a vida, Dipa Ma sabia pouco sobre o que a prática de meditação realmente implicava. Intuitivamente, no entanto, ela foi atraída para o caminho antigo que prometia libertação do sofrimento.

Ao contrário das práticas de concentração em que a atenção é fixada em um único objeto, a meditação Vipassana (insight) foca na natureza em constante mudança da experiência. “Insight” refere-se a ver claramente as três características da experiência: sua impermanência, sua insatisfatoriedade e a ausência de um eu inerente. O Buda ensinou que, através da meditação, é possível romper as ilusões que limitam nossas vidas. A libertação, ou iluminação, de acordo com o ensinamento budista, reside em experienciar a verdadeira natureza da existência.

Dipa Ma então deixou todos os bens que possuía para a vizinha, incluindo sua casa, pedindo que ela cuidasse de Dipa. Ela iria para um centro de meditação budista e esperava não voltar. Se você morrer, ela pensou, era melhor que fosse num centro de meditação.

A primeira vez de Dipa Ma em um retiro não foi como ela esperava. Ao chegar ao centro, recebeu um quarto e instruções básicas. Ela começou a praticar de madrugada, primeiro focando a atenção na respiração, depois observando as sensações, pensamentos e emoções que surgiam em seu corpo e mente enquanto estava sentada.

Com o passar do dia, sua concentração se aprofundou. Naquela tarde, ela começou a caminhar para o salão de meditação para encontrar seu professor. De repente, parou, incapaz de se mover. Ela não sabia por que, apenas sabia que não conseguia avançar nem levantar o pé. Permaneceu ali, intrigada, mas não particularmente angustiada, por vários minutos. Finalmente, ela olhou para baixo e viu que um cachorro grande havia cravado os dentes em sua perna. Sua concentração havia se tornado tão profunda, mesmo nas primeiras horas de prática, que ela não sentira nada.

Abruptamente tirada de seu estado de concentração, Dipa Ma pediu ajuda e tentou soltar a perna. O cachorro não a largou, mas finalmente alguns monges conseguiram afastá-lo.

Os monges garantiram que o cachorro não tinha raiva, mas ela preferiu garantir e teve que ir ao hospital diversas vezes para tomar injeções. Isso significou a perda das refeições no monastério, já que os monges só fazem uma refeição por dia. Dipa Ma ficou tão fraca que os monges sugeriram que ela retornasse para casa para se recuperar.

Em casa, sua filha, chateada pela partida abrupta da mãe, não tirava os olhos dela. Dipa Ma, sentindo que tinha perdido sua oportunidade única de alcançar a iluminação, frequentemente chorava de frustração.

Ainda assim, ela não desistiu da sua prática e, lembrando das instruções iniciais que recebera, passou anos meditando em casa, o quanto podia.

A oportunidade de fazer um novo retiro apareceu quando Dipa Ma soube que um amigo da família e professor budista, Anagarika Munindra, estava vivendo em um centro de meditação próximo. Ela o convidou para a sua casa e lhe contou sobre sua experiência no retiro. Ele, então, a encorajou a ir ao Thathana Yeiktha, o centro de meditação onde ele mesmo praticava sob a tutela do Venerável Mahasi Sayadaw, o monge, erudito e mestre de meditação mais renomado da Birmânia naquele tempo. Era uma oportunidade de aprender com um grande professor e na sua língua natal.

Por essa época sua irmã Hema e a família dela se mudaram para a Birmânia; então Dipa Ma deixou sua filha aos cuidados dela e foi para o centro de meditação.

Dipa Ma embarcou em seu segundo retiro com um estado de espírito muito diferente – menos urgente e impulsiva, mais planejada e ponderada. Embora fosse insone desde a morte de Rajani, agora ela descobriu que não conseguia ficar acordada. No terceiro dia, no entanto, conseguiu atingir um estado profundo de concentração e a necessidade de sono desapareceu, junto com o desejo de comer. Munindra, preocupado que sua concentração estivesse desequilibrada, pediu que ela participasse da palestra semanal de Mahasi Sayadaw, mesmo que ela não entendesse birmanês. Ela não queria ir, mas Munindra insistiu, e para agradá-lo, ela foi.

No caminho para a palestra, Dipa Ma começou a sentir palpitações cardíacas. Sentindo-se muito fraca, ela acabou engatinhando, subindo as escadas para o salão. Ela não entendeu a palestra, mas continuou sua prática de meditação. Após a palestra, Dipa Ma descobriu que não conseguia se levantar. Ela se sentia presa em sua postura sentada, seu corpo rígido, imobilizado pela profundidade de sua concentração.

Nos dias seguintes, a prática de Dipa Ma se aprofundou drasticamente, enquanto ela avançava rapidamente pelos estágios clássicos do “progresso do insight” que, segundo os ensinamentos da tradição budista Theravada (Sul da Ásia), precedem a iluminação. Ela experimentou uma luz brilhante, seguida pela sensação de que tudo ao seu redor estava se dissolvendo. Seu corpo, o chão, tudo estava em pedaços, quebrado e vazio. Isso deu lugar a uma intensa dor mental e física, com uma queimação e constrição excruciantes em seu corpo. Ela sentiu que explodiria de pressão.

Então algo extraordinário aconteceu. Um momento simples – era dia, ela estava sentada no chão, praticando entre um grupo de meditadores – uma transição instantânea ocorreu, tão silenciosa e delicada, que parecia que nada havia acontecido. Desse instante luminoso, Dipa Ma diria mais tarde, simplesmente: “Eu não sabia”, e ainda assim, nele, sua vida foi profunda e irrevogavelmente transformada. Depois de mais de três décadas buscando a liberdade, aos cinquenta e três anos, após seis dias de prática, Dipa Ma alcançou o primeiro estágio da iluminação. (A tradição Theravada reconhece quatro fases de iluminação, cada uma produzindo mudanças distintas e reconhecíveis na mente.)

Quase imediatamente sua pressão arterial voltou ao normal e suas palpitações cardíacas diminuíram. Anteriormente incapaz de subir as escadas do centro de meditação, essa subida agora era fácil, e ela podia andar em qualquer ritmo. Como o Buda havia previsto em seu sonho, o luto que ela carregava dia e noite desapareceu. Seu medo constante se foi, deixando-a com uma equanimidade sem precedentes e uma clara compreensão de que ela poderia lidar com qualquer coisa.

Dipa Ma continuou a praticar em Thathana Yeiktha por mais dois meses, então voltou para sua casa em Rangoon. Após algumas semanas, ela embarcou em um ano de viagens frequentes de ida e volta ao centro. Em seu próximo retiro, ela experimentou outro avanço após apenas cinco dias de meditação. O caminho que levou a esse insight foi semelhante ao primeiro, exceto que foi marcado por ainda mais dor e sofrimento. Após atingir o segundo estágio da iluminação, sua condição física e mental foram transformadas novamente; sua inquietação diminuiu, enquanto sua resistência física aumentou.

Aqueles que conheciam Dipa Ma ficaram fascinados com sua transformação. Quase da noite para o dia, ela havia mudado de uma mulher doente, dependente e abatida pelo luto para um ser saudável, independente e radiante. Dipa Ma disse aos que a rodeavam: “Vocês me viram. Eu estava desanimada e acabada devido à perda do meu marido e filhos e devido à doença. Eu sofri tanto. Eu não conseguia andar direito. Mas agora, como vocês me encontram? Toda a minha doença se foi. Eu estou revigorada, e não há nada em minha mente. Não há tristeza, não há luto. Eu estou muito feliz. Se vocês vierem meditar, também serão felizes. Não há mágica. Apenas sigam as instruções.”

Inspirados pelo exemplo de Dipa Ma, a família e os amigos começaram a ir ao centro de meditação também. Dipa Ma e sua irmã Hema, duas mulheres de meia idade, Dipa e seus primos adolescentes, todos meditando em meio aos monges: era uma visão bastante incomum e fantástica.

Durante um fenomenal ano de prática, todas as seis crianças da família, quatro meninas e dois meninos, alcançaram ao menos o primeiro estágio de iluminação(!). 

Os filhos de Hema se espantaram com as mudanças no temperamento da sua mãe, mas o marido não gostou, já que ela diminuiu a dedicação às tarefas domésticas para meditar. Ele foi falar com o mestre do centro de meditação, que o convenceu a começar sua meditação, e então ele ganhou algum insight e nunca mais incomodou Hema sobre meditar demais.

Em 1965, Dipa Ma entrou em uma nova dimensão da sua prática espiritual: a dimensão dos siddhis, os poderes psíquicos que aparecem no budismo, hinduísmo e outras tradições também. O professor Munindra escolheu Dipa Ma e sua família para o treinamento, e os treinou usando o Visuddhimagga, um livro clássico do budismo theravada.

Munindra sabia que os poderes psíquicos não são apenas amorais, mas também potencialmente sedutores. Há um grande risco de seu uso indevido, a menos que o desenvolvimento moral do estudante seja seguro. Dipa Ma foi escolhida não só por seus poderes de concentração, mas também por sua moralidade impecável.

Dipa Ma, Hema e três de suas filhas foram introduzidas às práticas de desmaterialização, duplicação de corpo, cozinhar sem fogo, leitura da mente, visitação aos reinos celestiais e infernais, viagem no tempo, conhecimento de vidas passadas e muito mais. Dipa Ma era a mais hábil de todos os alunos de Munindra, e a mais brincalhona. Diz-se que ela chegava às suas entrevistas com Munindra com naturalidade, atravessando paredes ou materializando-se espontaneamente do nada, e que chegou a dominar todas as cinco categorias de habilidades sobrenaturais.

Dipa Ma começou a ser procurada como uma guia de meditação e começou a ensinar em Rangoon.

A primeira aluna formal de Dipa Ma foi sua vizinha Malati Barua, uma viúva que tentava criar seis filhos pequenos sozinha. Malati apresentava um desafio interessante: ela estava ansiosa para meditar, mas era incapaz de sair de casa. Dipa Ma, acreditando que a iluminação era possível em qualquer ambiente, desenvolveu práticas que sua nova aluna poderia realizar em casa. Em uma dessas práticas, ela ensinou Malati a notar firmemente a sensação de sucção do bebê em seu seio, com completa presença de espírito, durante todo o período de amamentação. Isso significava algumas horas todos os dias e, como Dipa Ma esperava, Malati alcançou o primeiro estágio da iluminação sem nunca sair de casa. Assim, Dipa Ma iniciou sua carreira de guiar as donas de casa à sabedoria em meio às suas vidas agitadas.

***

PAZ INABALÁVEL

Em 1967, por conta da perseguição do governo birmanês aos estrangeiros, Dipa Ma retornou à Índia – ainda que os monges tenham lhe assegurado que ela poderia conseguir uma permissão especial para ficar como professora, uma honra sem precedentes para uma estrangeira, mulher e mãe solteira.

Depois de morar por um ano na casa de um parente nos subúrbios de Calcutá, Dipa Ma e sua filha se mudaram para um “apartamento minúsculo em um prédio antigo, localizado acima de uma oficina de retífica de metais no centro do bairro antigo de Calcutá. Tinha uma cozinha do tamanho de um armário (um metro por dois metros), com um único fogão a carvão no chão, sem água encanada (a água precisava ser carregada por quatro lances de escada) e um banheiro comunitário para várias famílias”.

Dipa Ma dormia em uma fina esteira de palha. Embora Dipa estivesse frequentando a universidade com bolsas do governo, eles não tinham renda e viviam de doações de boa vontade de membros da família.

Eventualmente, a notícia se espalhou pela comunidade bengali de que uma professora de meditação realizada, alguém que poderia “trazer resultados”, havia chegado da Birmânia. Embora muitas famílias observassem rituais budistas, a meditação ainda era estranha para as pessoas comuns. Dipa Ma ofereceu algo novo e diferente: uma prática espiritual real.

Uma a uma, as donas de casa de Calcutá começaram a chegar à sua porta. Apresentando lições difíceis, mas eficazes para pessoas que queriam meditar em meio às vidas ocupadas como chefes de família, Dipa Ma ensinou suas alunas a usar cada momento como uma oportunidade para a prática. A atenção plena, dizia ela, podia ser aplicada a todas as atividades: falar, passar roupa, cozinhar, fazer compras, cuidar dos filhos. “Todo o caminho da atenção plena,” ela repetia incansavelmente, “é este: ‘O que quer que você esteja fazendo, esteja consciente disso.'”

Dipa Ma tinha tanta fé no poder da prática em meio ao burburinho da vida doméstica que um admirador a apelidou de “A Santa Padroeira das Chefes de Família”. Quando perguntada sobre a diferença entre a prática formal de meditação e a vida diária, ela insistiu veementemente: “Você não pode separar a meditação da vida.” Tudo o que Dipa Ma pedia de suas alunas, ela fazia ela mesma, e mais: aderindo aos cinco preceitos, dormindo apenas quatro horas por noite, meditando muitas horas todos os dias. Esperava-se que as alunas reportassem a ela duas vezes por semana sobre suas práticas e que realizassem períodos de retiro autodirigido durante o ano. Enquanto a maioria dos moradores de Calcutá adorava discussões e conversas, Dipa Ma frequentemente permanecia em silêncio, ou falava apenas algumas frases simples quando ensinava. Suas alunas conseguiam encontrar refúgio no silêncio e na paz inabalável que ela proporcionava. “Ela foi uma das poucas pessoas em minha vida em cuja presença eu me aquietei”, lembrou uma aluna. “Eu conseguia descansar no silêncio dela, como descansar sob uma grande árvore que oferece sombra.”

O apartamento de um único cômodo da família tinha que servir como quarto e sala de estar para Dipa Ma, sua filha e, mais tarde, também para o filho de sua filha, Rishi. Era também um espaço de ensino para os estudantes, tanto indianos quanto ocidentais, que começaram a chegar. Às vezes, o quarto de Dipa Ma ficava tão lotado de alunos que eles tinham que ficar no corredor e na varanda. Com um fluxo contínuo de visitantes desde o início da manhã até tarde da noite, Dipa Ma nunca recusou ninguém, não importava o quão cansada estivesse. Quando sua filha a incitava a tirar mais tempo para si, ela insistia: “Eles estão famintos pelo dharma, então deixe-os vir.” Até mesmo monges ordenados buscavam sua orientação como professora.

A filha de Dipa Ma testemunhou muitas transformações na comunidade de estudantes, cujo comportamento no início era cheio de ansiedade, raiva, fofoca e falas maldosas, mas depois de meses de prática esses comportamentos desapareciam.

Jack Engler, que foi à Índia em meados dos anos 70 para avançar em sua prática de meditação e completar sua pesquisa de doutorado sobre meditação budista, notou que até mesmo as pessoas que moravam no entorno do apartamento de Dipa Ma foram mudando de comportamento com o tempo, deixando de ser barulhentas e encrenqueiras e passando a ser mais silenciosas e a se dar bem.

Joseph Goldstein, o primeiro estudante americano a ser apresentado a Dipa Ma, disse o seguinte:

Para chegar aos seus pequenos cômodos no último andar, era preciso descer um corredor estreito e escuro e, em seguida, subir muitos lances de escada escuros. Mas, ao chegar aos seus aposentos, eles pareciam cheios de luz. A sensação era maravilhosa. E quando eu saía, era como se estivesse flutuando pelas ruas de Calcutá, flutuando pela sujeira e pelas multidões. Foi uma experiência muito mágica e sagrada.

Dipa Ma era uma curiosa entidade para ocidentais: apesar de ser fisicamente pequena, uma senhorinha frágil, espiritualmente era gigante.

Entrar na presença dela era como pisar em um campo de força onde coisas mágicas podiam acontecer: mudanças de percepção, comunicação mente a mente e estados espontâneos de profunda concentração.

Seus alunos americanos a levaram para dar ensinamentos nos EUA, e ela encarou a longa viagem, apesar das grandes diferenças culturais, de estar com 69 anos e com a saúde debilitada. Ela fez duas viagens aos EUA, em 1980 e 1984. Depois continuou ensinando em seu apartamento em Calcutá até a sua morte, em setembro de 1989, com 78 anos. Seu vizinho, que estava com ela no momento da morte, conta o seguinte:

Então Ma me pediu para tocar sua cabeça, o que eu fiz, e comecei a entoar os sutras que ela me ensinou. Quando ela me ouviu cantando, curvou-se com as mãos em oração. Ela se curvou em direção ao Buda e não se levantou. Assim, a levantamos do chão e descobrimos que sua respiração havia parado. Ela havia morrido em sua reverência ao Buda. Seu rosto estava muito calmo e em paz.

Mais de 400 pessoas compareceram ao velório e seus estudantes cobriram o corpo da professora inteiramente com flores.

***

Não é uma história fantástica?

Ler sobre a vida de Dipa Ma mexeu comigo e está me inspirando para aprofundar minha prática. Suas realizações são tão fantásticas que me senti compelido a colocar praticamente os três primeiros capítulos do livro completos aqui. (Um abraço para os direitos autorais.)

Em breve sai um episódio no podcast do Videogame Cósmico em que vou comentar algumas passagens da vida dela, fiquem ligados lá no nosso Spotify e no YouTube.

E também vai sair uma parte dois em texto, onde vou focar mais nos ensinamentos dela.

Que você também possa se sentir inspirada(o) pelos feitos da Dipa Ma, que todos os seres sejam beneficiados e alcancem a liberação!

 

Por Pedro Renato

 

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