A morte não existe

A nossa cachorrinha Lola morreu esses dias.

Eu e a Dafne, minha parceira nesta empreitada cósmica aqui, não estamos mais juntos romanticamente há um ano mais ou menos, mas seguimos grandes amigos e sócios aqui no Videogame e na Ekadanta e cuidando das cachorrinhas junto também. São duas, a Lola e a mãe da Lola, que originalmente se chamava Nikita, apelidada de Rato e rebatizada de Lenis Lenilsons.

A Lenis tem 15 anos, é a matriarca da família, então a eventual morte dela nos assombrava de vez em quando, e a gente pensava em como iria lidar, e como seria horrível ficar sem a companhia da velhinha rabugenta mais fofa do mundo.

E então a vida pregou uma daquelas peças meio sacanas e foi a Lola, filha da Lenis, quem teve um monte de problema de saúde ao mesmo tempo a ponto de, sob a orientação e indicação dos veterinários de um ótimo hospital aqui de São Paulo, optarmos pela eutanásia dela.

E então a Lola se foi.

Ela era uma cachorrinha alegre, basicamente inebriada de felicidade 100% do tempo. Mesmo já sendo velhinha também – tinha seus 11 ou 12 anos – adorava brincar, passear, interagir com os humanos e tocar o terror nos cachorros que encontrava pela rua, com seus portentosos 3 quilos de pura massa.

Mas agora ela não está mais aqui, e temos lidado nos últimos dias com o nosso maior temor, nosso que eu digo da humanidade,

a morte.

A morte é estranha, porque um ser que estava com a gente o tempo todo, ou ao menos de vez em quando, de repente não está mais. Desaparece e não volta.

Talvez esse estranhamento com a ausência seja parte importante da dor que sentimos, do buraco que fica e causa uma sensação de vazio. É realmente estranho alguém simplesmente desaparecer por completo – e se a gente acreditar nisso vamos fatalmente sofrer mesmo.

MAS SERÁ QUE OS SERES DESAPARECEM?

Acho que essa é a grande investigação que temos que fazer pra tentar lidar melhor com a morte. Se o nosso sofrimento é baseado na impressão muito forte de que um serzinho que a gente amava sumiu, é bom termos certeza de que realmente foi isso que aconteceu, certo?

Pra um ser sumir, ele precisa primeiro ter surgido. E aí, será que os seres realmente surgem?

No que a Lola consistia?

Nos seus fartos pelos negros? Na sua empolgação estridente a cada vez que mencionávamos a palavra passear? Na sua mania de partir pra cima de quase todos os cachorros que encontrava na rua? No medo da chuva que fazia ela se esconder embaixo dos móveis?

Se eu tirar alguma dessas coisas, ela ainda continuaria sendo a Lola?

Se de repente ela parasse de atacar os cachorros na rua e o medo da chuva sumisse, seguiríamos chamando ela de Lola.

Se retirássemos o seu pelo ou algum membro, também continuaríamos chamando ela de Lola.

A Lola não era, portanto, nenhuma das partes ou características que a compunham. E também não era o conjunto dessas partes e características, porque se tirássemos algumas delas, continuaríamos chamando-a de Lola.

O corpinho da Lola foi cremado depois que ela morreu. Depois da morte chamamos o corpo de cadáver. E as cinzas de cinzas. Pra onde foi a Lola?

Investigando dessa forma, fatalmente chegamos à conclusão de que a Lola nunca surgiu como uma entidade realmente existente.

Fomos nós que aplicamos o rótulo Lola naquele amontoado de pelos. E é isso que fazemos o tempo todo com os animais, seres humanos e todos os objetos que encontramos. Rotulamos as coisas com nossas mentes conceituais – o que é até útil pra facilitar a comunicação e a compreensão do funcionamento das coisas, mas é um problema quando acreditamos que as coisas realmente existem independentemente da nossa conceituação.

E toda nossa vida, sonhos, medos, desejos, irritações etc. são baseadas nessa crença falsa crença (kkkkrying)!

Esse é o ponto central para a liberação da mente: as coisas e os seres não existem como entidades independentes, realmente existentes no mundo. Na verdade tudo é um fluxo em constante transformação. Os seres são amontoados de átomos, moléculas, células, tendências mentais, ações etc., tudo isso em incessante mudança.

Pra gente sofrer menos quando perdemos entes queridos, precisamos tentar entender isso, ver que as coisas são, de fato, assim.

Nem existem entes queridos no fundo, mas apenas fluxos de consciência que operam em corpos e criam identidades e se fixam a essas identidades e sofrem quando essa identidade criada parece desaparecer.

Isso pode parecer um pouco insensível, mas na verdade os seres que se libertam da fixação às identidades (a própria e a dos outros) manifestam um amor todo abrangente, que inclui todos os seres, para além das identidades momentâneas que são, enfim, manifestações temporárias da natureza livre e criativa de cada um.

 

A MORTE NÃO EXISTE

No fim do ano eu fui no terreiro de umbanda cujo pai de santo é meu amigo, lá na minha cidade de origem, Gravataí, Rio Grande do Sul. A mãe desse meu amigo falecera há pouco tempo, e eu dei meus pêsames. E aí ele falou assim: “É a vida, a morte é só uma transformação.” Eu complementei, “A morte nem existe!” e ele concordou.

Só tem morte se acreditarmos que um ser fixo e realmente existente um dia surgiu. Como isso não acontece, de fato, a morte não existe.

Somos parte de um fluxo de mentes e seres em constante transformação. A morte é só uma delas, quando um corpo físico fica pra trás.

Porém, segundo os seres mais sábios da história da humanidade, a vida continua. Aquele fluxo de consciência (que não é um ser fixo, nunca foi e nunca será) continua operando, manifestando novos corpos e identidades, caminhando para a liberação da fixação à essas identidades, dissolvendo a confusão para repousar no nirvana.

Nós todos estamos nessa aventura, e o fluxo de consciência que a gente chamava de Lola continua operando, de acordo com seu karma e guiada pelos Budas (ao menos é o que a gente pediu nas nossas orações e mantras rsrs).

A nossa natureza profunda não nasce nem morre. Nós somos a consciência atemporal, que está além do passado, do presente e do futuro. Eu, você, a Lola e todos os insetos e deuses.

Entender isso e treinar a mente para ver diretamente essa realidade é a única coisa importante que temos pra fazer.

Pra finalizar, uma sequência de fotos da Lola. Obrigado por alegrar a nossa vida e siga em paz, rumo ao nirvana, neném.

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