
Talvez você esteja sonhando nesse exato momento
“Será que eu tô sonhando agora?”
Essa é uma pergunta que, em geral, não costumamos nos fazer. No entanto, os mestres budistas recomendam que a façamos com alguma frequência.
Nesse texto eu vou tentar explicar por quê.
A REALIDADE NÃO É TÃO SÓLIDA QUANTO PARECE
O ponto central da visão budista sobre a realidade é que a realidade não é real.
Tudo que parece sólido e realmente existente, como você mesma, sua tia, o arroz com feijão que você almoçou, a música emo que você ainda escuta apesar de estar mais perto dos 40 do que dos 20, a Ana Maria Braga, tudo isso parece realmente existente.
Porém, nada disso possui uma realidade objetiva. Você pode adorar Good Charlotte (eu mesmo gosto de algumas músicas, confesso), mas um senhor de 93 anos que mora no interior de Goiás e é um dos poucos seres humanos ainda vivos que compareceu ao primeiro show da lendária dupla sertaneja Milionário e José Rico dificilmente acharia uma boa ideia gastar metade da sua aposentadoria para comparecer a um show de uma banda de punk melódico emo norte-americana.
As coisas só existem da perspectiva de uma consciência que observa as coisas. Como cada consciência vê as coisas de um jeito, não há realidade objetiva em nada nesse mundo. Há apenas o que cada mente percebe enganosamente como uma realidade objetiva, ao não perceber que as outras mentes estão vendo as coisas de outros jeitos.
Se ainda tá meio confuso pra você, pense na impermanência. Tudo que surge desaparece instantaneamente.
Mesmo a nossa identidade, que parece algo tão real – baseamos toda nossa vida na existência de um eu realmente existente cuja sede é o nosso corpo – na verdade é um desfile infindável de versões diferentes.
Você pode em um instante estar pensando em como seu chefe é babaca e em como você é uma funcionária injustiçada e no instante seguinte você pode pensar na sua nova crush e em como ela parece estar a fim de você e vocês com certeza em breve vão viajar juntas e quem sabe ano que vem juntar as escovas de dente (você a conheceu no último fim de semana).
Quem é você, a funcionária injustiçada ou a amante fervorosa? Ou alguma das outras 85.796 versões que você cria de você mesma a cada dia?
Toda realidade é assim: momentos fugazes que surgem e desaparecem. A estabilidade e a realidade do mundo são ilusões construídas pela própria mente.
E quem já viu algum aspecto da sua vida desmoronar (ou seja, todos nós) no fundo sabe disso.
TUDO SE DESMANCHA NO AR – COMO UM SONHO
Observando a impermanência, podemos ir percebendo a natureza fugidia da realidade – e como essa “realidade” que vai se desmanchando no ar a cada instante é muito parecida com os sonhos.
Quando acordamos pela manhã não temos a menor dúvida de que as cenas que vivemos durante a noite eram apenas um sonho. Não cogitamos sobre a realidade daquilo. As imagens surgiram e desapareceram dentro da nossa mente; logo, não são reais.
Agora vem o plot twist: nada garante que a vida que levamos acordados também não esteja passando toda ela dentro da nossa mente.
Poderíamos argumentar que a vida acordada é muito mais estável e previsível do que vida nos sonhos. Esta pode ser caótica, esquisita, confusa, imprevisível. Contudo, essa análise sobe o caos onírico é feita sempre depois que acordamos. Durante o sonho, o nosso personagem encara toda a sua vivência como sendo completamente real.
Além disso, temos sonhos em que estamos vivendo situações cotidianas, como tomar um café e trabalhar, e nesses momentos não temos a menor sombra de dúvidas de que realmente somos alguém que está tomando café ou trabalhando pacatamente, enquanto o tempo segue seu curso, como sempre.
É claro que existem diferenças entre o sonho e o estado de vigília. A principal é que os personagens do sonho com quem você interage são puras criações mentais, enquanto os personagens da vida acordada têm suas existências independentes de você – embora você não consiga acessar, digamos assim, essas existências independentes, porque você só entra em contato com outros seres por meio da sua mente, o que torna toda a sua experiência uma espécie de projeção mental, como nos s… você já sabe.
LEMBRAR QUE A VIDA É COMO UM SONHO É LIBERTADOR
Finalmente, pode-se concluir que não há uma característica da experiência de vigília que a distinga claramente do sonho. É apenas uma questão de intensidade e de predisposição emocional. Você acredita que está acordado porque quer se sentir seguro e sentir que o mundo ao seu redor é sólido, real e solidário. Se duvidasse seriamente de estar acordado, se sentiria assustado e confuso. A estabilidade da experiência de estar acordado o tranquiliza, de modo que você acredita nela e dá a ela uma credibilidade que você não se permite dar aos sonhos. Se você sofre em um sonho, fica feliz em deixá-lo quando termina, sentindo-se seguro de que não era mesmo real. Se você sofre no que chama de vida de vigília, acaba se envolvendo emocionalmente e lhe confere a condição de realidade absoluta.
Khenpo Tsultrim Gyamtso – Fases da Meditação Sobre a Natureza do Vazio.
Eis o motivo (sublinhado, logo acima) pelo qual os mestres budistas nos lembram constantemente de que a realidade é como um sonho.
Quando acordamos e percebemos que não estávamos realmente pelados na escola e as pessoas rindo de nós não eram reais, ficamos aliviados e esquecemos aquilo. Se algo do tipo acontece na vida real podemos passar dias, meses ou anos lidando com os traumas profundos oriundos do ridículo por que passamos.
Acreditar que a realidade é sólida e estável pode dar uma sensação de segurança, mas essa segurança é totalmente falsa, simplesmente porque a realidade não é sólida nem estável.
É melhor, portanto, fazer as pazes com a impermanência e a ausência de realidade objetiva do eu e do mundo. Com o tempo, vamos ganhando confiança nessa sabedoria e descobrindo que esse é o portal para níveis de paz e relaxamento mental muito profundos.
O pulo do gato para viver mais leve, desencanar dos sofrimentos com mais facilidade, ter uma mente mais desapegada e conseguir rir das coisas (inclusive das que parecem muito sérias) é perceber que todas as experiências são como um sonho, inclusive as que temos quando estamos acordados.
De um jeito ou de outro, você está sonhando nesse exato momento.
Por Pedro Renato
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Para estabilizar a visão profunda de que a realidade é como um sonho, é preciso fazer o treinamento da mente. Na nossa comunidade a gente junta pessoas que querem estudar e praticar os ensinamentos budistas com esse objetivo. Se quiser conhecer a Ekadanta, clica aqui.

