
A ideia de “eu” é uma grande viagem
Pois é, gente, a base da nossa existência, da nossa vida, da nossa visão de mundo, dos nossos sonhos e objetivos é, segundo o budismo, uma grande viagem.
Eu acho que essa afirmação – a de que não existe um eu de verdade na gente – é tão ousada, tão contrária ao senso comum, e sobretudo tão libertadora, que vale a pena dar uma olhada com calma.
O apego a uma falsa ideia de um eu permanente, singular e independente é a causa raiz de todo o sofrimento
diz o mestre Khenpo Tsultrim Gyamtso, no livro Fases da Meditação Sobre a Natureza do Vazio. E continua:
Não é necessário ter uma ideia explícita ou claramente formulada de um eu para agir como se tivéssemos um. “Eu” aqui significa o eu implícito, que também pode ser considerado implícito no comportamento dos animais. Os animais, assim como nós, se identificam com seus corpos e mentes e estão constantemente buscando conforto físico e mental enquanto tentam evitar o desconforto e aliviar a dor. Tanto os animais como os seres humanos agem como se tivessem um eu para proteger e preservar, e consideramos esse comportamento automático, instintivo e normal.
Ou seja, se não existe de fato um eu, estamos todos, nós e os animais, viajando.
Porque se a gente parar pra pensar, realmente talvez o eu seja a raiz de todo nosso sofrimento, angústia, ansiedade, medo, tristeza, desânimo, inadequação, tudo enfim que não gostamos de sentir. Sempre que nos sentimos mal tem um euzinho ali na base da experiência. Dizemos “Eu estou mal”: a própria ideia de estar mal depende de existir um eu.
Agora, quem está mal?
Não sabemos direito.
VAMOS INVESTIGAR
O que a gente entende como sendo o eu?
Para ter algum significado, esse eu deve ser duradouro, pois se perecesse a cada momento, não se preocuparia tanto com o que aconteceria no momento seguinte – não seria mais o mesmo “eu”. E também deve ser singular. Se não tivéssemos uma identidade separada e individual, por que deveríamos nos preocupar com o que aconteceu com o nosso “eu”, mais do que com o de outra pessoa? Ele deve ser independente ou não faria sentido dizer “eu fiz isso” ou “eu tenho aquilo”. Sem uma existência independente, não haveria ninguém para reivindicar as ações e experiências como sendo suas.
Todos nós agimos como se esse eu permanente (duradouro), único (singular) e independente realmente existisse. Isso é meio básico, simplesmente operamos desse jeito no mundo, baseados na ideia de que esse eu existe. É um hábito automático que nós sequer questionamos ou tentamos investigar.
No entanto, todo o nosso sofrimento está associado a essa preocupação. Toda perda e ganho, prazer e dor surgem porque nos identificamos tão intimamente com esse vago sentimento de individualidade que temos. Estamos tão emocionalmente envolvidos e apegados a esse “eu” que o tomamos por garantido.
Quem está mal, portanto, na frase “quem está mal”, é esse eu vago que parece ser duradouro, único e independente. Nós em geral não consideramos a possibilidade de esse eu não existir. Andamos pelo mundo protegendo e promovendo esse eu, seja lá o que ele seja.
Os budistas levam essa questão a sério, e investigam o eu. É claro: o objetivo do budismo é extirpar o sofrimento e a insatisfatoriedade da vida; como o eu está na base de todas as experiências (que são por natureza sofrimento e instatisfatoriedade, pois impermanentes), só resta investigar o eu, para localizar a origem do sofrimento e tentar resolver a questão.
Os meditadores não especulam sobre esse “eu”. Eles não têm teorias sobre se ele existe ou não. Em vez disso, eles apenas treinam em observar imparcialmente como suas mentes se apegam à ideia de eu e meu e como todo o seu sofrimento decorre desse apego. Ao mesmo tempo, eles procuram cuidadosamente por esse eu e tentam isolá-lo de todas as outras experiências. Como é o culpado no que diz respeito a todos os seus sofrimentos, eles querem encontrá-lo e identificá-lo. A ironia é que, por mais que tentem, não encontram nada que corresponda a esse eu.
QUEM ESTÁ MAL, AFINAL?
É um eu ilusório construído pela mente, um personagem. O eu que está mal não é real; o eu que está bem também não. E o eu mais ou menos é outra ilusão.
Ou eles tem alguma realidade? Se o eu que está mal com o pé na bunda que tomou é real, como ele desaparece magicamente e dá lugar a um eu animado com uma nova paixão? E se este é real, como ele desaparece e em seu lugar aparece um eu entediado com o novo namorado?
Os nossos eus são uma sucessão de incontáveis construções mentais que surgem e desaparecem. O que surge e desaparece desse modo frenético é como um sonho, uma bola de sabão, um truque de mágica. Não há nada de concreto no eu que atribuímos a nós e aos outros.
Se você ainda não está convencida,
Pense cuidadosamente sobre a dor e o sofrimento e pergunte a si mesma quem ou o que está sofrendo. Quem tem medo do que vai acontecer, quem se sente mal com o que aconteceu, por que a morte parece uma ameaça enquanto o presente desaparece a cada momento, mal tendo tido a chance de acontecer? Você perceberá que o seu pensamento está cheio de contradições, inconsistências e paradoxos insolúveis.
Quando consideramos que o corpo e a mente são um eu permanente, singular e independente, atribuímos a eles qualidades que simplesmente não possuem.
Nada em todo o fluxo de fenômenos mentais e físicos que constituem a experiência do corpo e da mente tem a qualidade de existência permanente, unitária e independente. Tudo está mudando e é impermanente, momento a momento. O esforço persistente em tratá-lo como se fosse o eu faz dele um fluxo constante de sofrimento (dukha).
DÁ PRA VIVER SEM UM EU?
Bom, se o eu não existe, ninguém vive de fato com um eu. Mas a gente usa essa ideia de eu pra interagir com o mundo, com os outros seres, então parece estranho fazer de outro jeito. Como agir sem um eu na base da mente?
Sobre isso o Lama Alan Wallace dá a seguinte dica: haja como se não estivesse aí. A gente continua operando no mundo, é claro, mas podemos fazer isso apenas fingindo que somos um eu. Podemos lembrar, o máximo de vezes que conseguirmos, que na verdade não tem um eu aqui. Isso traz um relaxamento instantâneo: não há o que defender, o que temer, o que promover. (E se não traz relaxamento é porque você está fixado em algum eu que não gosta da ideia de não existir um eu.)
Você não precisa estar certo em uma discussão, não precisa ser a pessoa mais legal do recinto, não precisa ser admirado por todos da rodinha. Não precisa de nada, na verdade. Nem tem um eu aí! Apenas relaxe e se divirta.
Então não somente dá pra viver sem um eu, como é muito melhor, abissalmente melhor viver desapegada da necessidade de sustentar infinitas identidades.
É claro que pra chegar nesse estado de desapegar completamente do eu precisamos treinar a mente, e aí a meditação precisa entrar em cena. A boa notícia é que o combo meditar com regularidade + estudar os ensinamentos sobre a mente + tentar aplicar no dia a dia dá resultado rapidamente – pode me cobrar.
Quando os meditadores dirigem sua atenção a quem ou o que é esse eu, eles não conseguem encontrá-lo. Então, gradualmente, muito gradualmente, ocorre-lhes que a razão pela qual não conseguem encontrá-lo é porque ele não está lá e nunca esteve. Existe uma tremenda resistência emocional a essa realização, de modo que leva muito tempo para atravessá-la, mas, quando isso ocorre, há uma liberação imediata de tensão e sofrimento. A causa se foi. A sua causa era um apego mental a algo que não estava lá.
A ideia de um eu é uma grande viagem coletiva. A parada é soltar desse apego mental a isso que nem está, afinal, em lugar nenhum.
Por Pedro Renato
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