Mente deludida x Mente original

A nossa mente é totalmente livre. Mas a gente constrói identidades e, a partir dessas identidades, realidades inteiras. Nos fixamos nas identidades e realidades construídas, definimos objetivos, nos frustramos e nunca estamos totalmente satisfeitos. Sofremos, inevitavelmente. Porém, as realidades, identidades e fixações são ilusórias; são construídas pela mente. A nossa liberdade natural nunca se perde, nunca é verdadeiramente corrompida. Aprender a soltar das fixações, reconhecer essa liberdade completa e natural da mente e operar no mundo a partir dela é a essência do caminho budista.

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O Lama Padma Samten falou mais ou menos isso no dia 01/01/2025, na palestra de abertura do ano no Centro de Estudos Budistas Bodisatva em Viamão/RS. Enquanto eu e minha mãe e o resto do templo lotado de praticantes ouvia atentamente, o Lama explicou que se a pessoa compreender isso, e apenas isso, não precisa de mais nada. É o suficiente.

Mas a gente não entende.

Até podemos entender intelectualmente – essa é a parte fácil, mas compreender mesmo, ver diretamente essa realidade, é o desafio. É O DESAFIO mesmo, é o desafio supremo e maravilhoso, porque é essa visão que propicia a liberação, o desapego, o reconhecimento da liberdade natural da mente e a operação no mundo a partir dela.

Como a gente não entende, o Lama e todos os mestres e o próprio Buda Sakyamuni explicam de novo, detalham, usam metáforas etc. etc. etc.

Então hoje vamos brincar de explorar algumas metáforas do Buda Sakyamuni em que ele tenta ensinar a Ananda e demais discípulos as diferenças entre a mente original, que é a mente livre de qualquer fixação ou inclinação, e a mente deludida, que é a mente perdidinha no samsara.

 

ILUSÃO X DELUSÃO

Antes de mais nada vale a pena acertarmos a distinção entre as palavras ilusão delusão. 

Ilusão todo mundo conhece: um engano, uma má interpretação, uma fantasia, uma confusão entre o que uma coisa aparenta ser e o que ela realmente é.

No budismo, contudo, aparece muito a palavra delusão. Aí um dia eu fui pesquisar a diferença entre as duas. No dicionário não achei, mas achei uma explicação interessante em um site budista.

Ilusão é quando você sabe que está sendo enganado, como assistir a um espetáculo de mágica. É evidente que o mágico não cortou a pessoa ao meio, mas aos olhos dos espectadores parece que cortou.

Delusão é quando você está sendo enganado mas não faz a menor ideia disso, ou seja, está completamente enredado, afundado e afogado no engano.

É o nosso caso.

 

A METÁFORA DA POUSADA

Estamos (desde um passado imemorial) enredados, enganados, absolutamente perdidos achando que a mente deludida é a nossa natureza essencial. A mente deludida é a mente que opera a partir da delusão básica da separatividade: nos enxergamos como um indivíduo realmente existente e separado de todos os outros seres e do cosmos. A partir dessa delusão básica, que os budistas chamam de avidya, ignorância, construímos os nossos castelos de cartas. Achamos que somos realmente pessoinhas que têm objetivos muito sérios e achamos que as coisas devem funcionar dessa ou daquela forma, mas as coisas nunca funcionam exatamente como gostaríamos, e então a gente passa mal, fica irritado, triste, furibundo.

Para nos ajudar o Buda usou algumas metáforas, como a da estalagem. Porém, como estalagem é uma palavra um pouco fora de moda – ninguém fala “pô vou ficar numa estalagem maneira em Ubatuba” – vamos adaptar aqui para pousada. 

A relação entre a mente deludida e a mente original é semelhante à relação entre a dona da pousada de Ubatuba e os hóspedes. Os hóspedes aparecem devido a certas causas e condições – eles têm dinheiro para viajar, para se hospedar na pousada, eles tomaram a decisão de fazer isso, a pousada está aberta etc. – e vão embora quando essas causas e condições se esgotam – as férias sempre acabam, né?

A dona da pousada, no entanto, não vai a lugar nenhum. Os hóspedes entram e saem, mas a sra. Ludmila, vamos chamá-la assim, está sempre lá, sempre tranquila, sorrindo para os visitantes, mesmo aquele casal meio mala que reclamou que tinha uma teia de aranha no cantinho do box do banheiro. Dona Ludmila está sempre ali, plena, mesmo quando chega o inverno e todos os hóspedes vão embora. Os hóspedes vêm e vão, mas a sra Ludmila e a pousada continuam lá.

Assim é a mente original.

A mente deludida adquire vários formatos, ela se manifesta como uma miríade de identidades, de visões de mundo, de tipos de ação, de fala, de pensamento. Esses formatos não têm substância alguma; impermanentes até o talo, surgem e cessam como bolhas de sabão.

Mas a base da mente é diferente. A mente original está sempre presente. É a dimensão livre da mente, a base vazia de onde surgem todas as identidades e realidades que a gente toma por reais e que são, na verdade, a mente deludida. Essa mente deludida é também chamada de discriminativa pelo Buda, já que, operando a partir da delusão da separatividade, organiza, divide, discrimina os objetos aparentemente externos.

“Ó Ananda, você não deve tomar a mente discriminativa que se altera devido a condições externas como sua natureza essencial; mas, ao transcender esta mente fenomênica, faça com que a mente que nem se move nem se altera seja seu mestre.”

Buda – Surangama Sutra

 

LUZ E ESCURIDÃO

Outra imagem que o Buda utilizou para identificar essa mente original que não se move nem se altera é a da luz e da escuridão. Quando uma sala está iluminada, não deixamos de ter o poder de ver a escuridão, e não é porque a escuridão vai embora que conseguimos ver a luz. O poder da visão está sempre presente; luz e escuridão são apenas momentos mentais. Tudo que vemos, ouvimos, cheiramos, pensamos, que vivemos enfim, são momentos mentais. Tudo que surge passa (e surge outra coisa no lugar e outra e outra). Mas a capacidade de ver (não no sentido do olho, mas no sentido profundo de perceber, da forma que for), não se esvai nem se altera jamais. Esse observador profundo que não nasce nem morre é a mente original.

“Assim, deve-se saber que a mente original não pode ser afetada seja pela luz ou pela escuridão; apesar de estar encoberta por diversos obscurecimentos, tais como bem e mal, amor e ódio, que vêm e vão devido a causas e condições externas, ela não é maculada ou manchada; ela é essencialmente sutil, pura e indestrutível.”

Buda – Surangama Sutra

 

OS FORMATOS DA ÁGUA

Agora vamos adentrar na minha atual metáfora preferida: a água e os formatos que ela pode adotar. Essa metáfora é tão maravilhosa que vou, para não atrapalhar, simplesmente reproduzir as palavras diretas do Buda, límpidas como a água do mar da praia mais paradisíaca que você possa imaginar:

“Ó Ananda, quando a água é vertida em um recipiente redondo ela assume a forma redonda; quando é derramada em um vaso quadrado, ela toma a forma quadrada. Mas não há uma forma quadrada ou redonda na natureza da água. Desta forma, as pessoas percebem suas vidas desde um passado imemorial de formas variadas, assim como quando a água é vertida em recipientes pequenos ou grandes, redondos ou quadrados, e elas experimentam bem e mal, amor e ódio; assim elas são levadas a correr atrás de coisas externas, sujeitando-se a sofrimentos diversos. Esta situação é uma forma de delusão surgida da convicção errônea que identifica a mente original com a identidade fenomênica acorrentada a condições externas, conforme exemplificado pelos recipientes para a água. Portanto, quando alguém deixa de se ver acorrentado a condições externas e retorna à sua própria mente verdadeira, que não possui limitações, ele se torna idêntico ao Buda, e seu corpo e mente se tornam perfeitos e claros. Livre de quaisquer obstruções, ele é capaz de alcançar o Dharmadhatu das dez direções diretamente através de seu próprio corpo.”

Buda – Surangama Sutra

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Depois dessa explicação cristalina, não tem muito o que acrescentar. Não somos o formato que a água assume em um pote. Somos a natureza ilimitada da água que pode adotar qualquer formato. 

 

P.S.: O Dharmadhatu, que aparece no final da fala do Buda, é a esfera da realidade, a realidade absoluta além das aparências convencionais, onde tudo é interconectado e não dual.

“Assim como no espaço ilimitado do Dharmadhātu, todos os fenômenos surgem em interdependência, sem obstrução, sem separação.”

Avatamsaka Sutra

 

Por Pedro Renato

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Quer esticar o papo sobre a mente deludida e a mente original? Temos um episódio do nosso podcast sobre o assunto. Pra ver no YouTube é só clicar aqui. Pra ouvir no Spotify, clica aqui.

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