
Preciso abandonar o AC/DC
[Para uma melhor experiência, assista aos vídeos a seguir com um bom fone de ouvido ou conectado a um som potente e com o volume no máximo.]
E aqui estou eu, sorriso de orelha a orelha, assistindo pela 549ª vez o maior show de rock’n’roll da história da humanidade: AC/DC no estádio do River Plate, Argentina, 2009.
Eu já tinha ouvindo um ou outro riff da banda, é claro (eu e mais alguns bilhões de seres humanos), mas um dia, há uns 15 anos, o algoritmo do YouTube jogou pra mim isso aqui:
Aí eu, um jovem de 21 ou 22 anos que já curtia Offspring, Green Day e outras bundas de punk e hardcore, imediatamente me dei conta que tinha algo diferente no que os tiozinhos faziam. O público ensandecido, o estádio chacoalhando, o vocalista com um sorriso no rosto, o guitarrista com o demônio nos dedos. Isso é a coisa mais rock’n’roll que eu já vi.
Desde então virei um dos incontáveis fãs ardorosos da banda australiana. Vi e revi trocentos shows e documentários. Li biografias da banda e tenho algumas pra ler ainda. Comecei a colecionar camisetas. Comprei um pôster e coloquei no meu quarto. (E em todo lugar que morei desde então tem algum quadro ou pôster ou item de decoração ou tudo isso junto.)
Quando descobri que o vocalista anterior morreu em 1980 fiquei maluco: o cara era ainda melhor que o atual, um verdadeiro rocker. Cantava demais, com seu vocal rasgado, gritado e ainda assim perfeitamente afinado, totalmente vida loka. E ainda era debochado:
Quando Bon Scott morreu o AC/DC estava começando a alcançar algum nível de estrelato internacional. Só que em vez de acabar, a banda substituiu o vocalista e lançou Back In Black, apenas o segundo álbum mais vendido da história (só perde pro Thriller, do Michael Jackson). Se você não esteve em coma nos últimos 45 anos, provavelmente já ouviu o riff de guitarra mais rock’n’roll de todos os tempos:
Minha irmã e um casal de amigos me acompanhavam na idolatria, e nós caçávamos bons covers do AC/DC em qualquer cidade do Rio Grande do Sul onde houvesse algum. Era sempre uma experiência extática.
Mudei pra São Paulo e continuei frequentando os covers. Os anos passaram e comecei a fazer aula de canto pra, quem sabe, cantar num cover de AC/DC. Recentemente fiz uma tatuagem do raio que é o símbolo da banda.
E desde 15 anos atrás até hoje, quando coloco pra tocar aquele show, em algum momento escorrem lágrimas dos meus olhos. Não sei por que exatamente, não dá pra explicar com palavras, mas se fosse tentar eu diria que os caras conseguiram sintetizar a essência do rock and roll, sabe, com a agressividade dor riffs de guitarra porém com um uso magistral do silêncio entre esses riffs, um estilo único, bluezado, groovado, é o roll do rock’n’roll. Ver aquele mar de gente pulando e sorrindo ao som dos hinos do AC/DC sempre me arrepia e me dá vontade de pular e dançar e viver.
Olha o quão badass e ao mesmo tempo divertido é isso aqui:
ABANDONAR O AC/DC
Dito tudo isso (e eu disse tudo isso e postei os vídeos pra espalhar a palavra da maior banda de rock’n’roll da galáxia, é claro), eu preciso abandonar o AC/DC.
A felicidade que o AC/DC me proporciona é, afinal, ilusória.
Na hora que eu escuto, eu tô feliz. Mas aí acaba, e eu até posso ficar com um resquício de felicidade na mente por algum tempo, mas depois isso passa, e aí de repente eu nem lembro mais que o AC/DC existe, estou enrolado em atividades maçantes da vida comum, ou estou imerso em elucubrações mentais, e submetido às emoções perturbadoras, ansioso com alguma coisa qualquer, irritado com outra etc. etc.
Não tem como ouvir AC/DC 24 horas por dia. E se eu fizer isso, vou provavelmente enjoar da barulheira e estragar tudo e arrebentar meus tímpanos.
Este é, senhoras e senhores, o samsara nu e cru.
As coisas que mais amamos – e, como pude demonstrar, eu amo AC/DC – são ilusões, bolhas de sabão, sofrimentos disfarçados de felicidade.
Quando a felicidade comum do mundo, venha ela do rock’n’roll, do samba, do sexo, da viagem, da paixão, quando essa felicidade acaba, fica aquele gosto amargo na boca. Precisamos de outro estímulo. Precisamos de mais, sempre mais. E essa mente insatisfeita é justamente o que nos impede de estarmos em paz e felizes o tempo todo.
O AC/DC me proporcionou momentos maravilhosos? Com certeza. Mas eu continuo com a minha mesma mente presa nas suas fixações e quase sempre insatisfeita. O AC/DC, e digo isso com muito pesar, não conduz à liberação da mente.
O QUE QUERO DIZER COM ABANDONAR O AC/DC
Não estou dizendo que eu deveria parar de ouvir AC/DC; escrevo estas mal traçadas, aliás, ao som do já referido show em Buenos Aires, nesse momento o Angus tá fazendo o seu solo gigante e alucinado no verdadeiro Gênesis do rock’n’roll que é a música Let There Be Rock.
O ponto é que eu deveria perceber que o AC/DC não vai me trazer felicidade verdadeira. Não por ser o AC/DC e não o Led Zeppelin (que é foda também) ou algo assim, mas porque nenhuma experiência transitória pode trazer uma felicidade mais do que transitória.
E alguma coisa pode?
Sim, pode. Segundo os maiores mestres espirituais da história da humanidade, é possível alcançar o nirvana, um estado de felicidade genuína, contínua e permanente, que se mantém inclusive após a morte.
Então eu tô tentando abandonar o AC/DC mentalmente, sabe. O que se reflete também na prática, em onde eu coloco tempo e energia. Não tô mais fazendo aula de canto e abandonei o projeto de ser vocalista de um cover da banda. Me contento em cantar AC/DC no karaokê, o que já é bem divertido (e agora preciso abandonar um pouco os karaokês também rsrs). Desisti de ir pra Europa ou EUA ver o show do AC/DC. Os velhinhos estão em turnê, provavelmente a última, e se vierem pra América Latina eu vou com certeza, mas pra Europa/EUA não vou, porque isso poderia comprometer os investimentos aqui no projeto do Videogame Cósmico, que enfim tá bastante associado à minha prática espiritual.
Vou continuar ouvindo AC/DC e indo em cover e cantando em karaokê?
Possivelmente por um bom tempo. Mas depois que eu morrer e tiver que encarar os demônios e deidades que brotarem da minha mente no pós morte, mantendo o reconhecimento da sua natureza ilusória pra não cair num renascimento ruim, o AC/DC vai ser uma lembrança cada vez mais distante, se é que vai ser alguma lembrança. (Talvez o Angus apareça com seus chifres como um demônio ou deidade no pós morte, seria legal.)
Então o meu ponto, além de apresentar o AC/DC pra vocês, é: melhor ir abandonando, desapegando das coisas comuns do mundo.
Tudo indica que o nirvana existe. A felicidade perfeita, insuperável. O caminho tá aí, ensinado pelos mestres.
Colocar cada vez mais energia nesse caminho é a coisa mais rock’n’roll que podemos fazer.
Até mais rock’n’roll que isso aqui, por incrível que pareça:
Por Pedro Renato
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Quer trilhar o caminho do nirvana mas não sabe como? Talvez você goste da Ekadanta.

